segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Minha filosofia da composição


(a Edgar Allan Poe)

            Talvez um dos maiores mistérios da humanidade seja aquele referente à origem da inspiração humana para produzir arte. Não sou neurologista e apenas aspiro arrogantemente a psicólogo, o que acaba por não me permitir os pitacos no que tange à matéria psíquica alheia, em especial sobre quais processos levam o cérebro de um estado A, que não é levado a produzir arte, ao estado B, de inspiração (outrora chamada “entusiasmo”, ou seja, “com deus dentro de si”). A única matéria mental à qual possuo acesso não é outra senão a minha, e, mesmo a essa, o acesso é parcial e incompleto. Sobre a mudança de estados, A para B, no que respeita à minha psique, tenho algo a falar: há determinadas situações, determinados sentimentos e determinadas brincadeiras (especialmente as brincadeiras com a linguagem) que fortemente convencem às canetas de que pertencem à minha mão e os cadernos, de que lhes agrada mais a tinta que a brancura. Diante desse convencimento, assim como Valery, não produzo música, porque não me compete, mas produzo palavras, sintagmas, períodos, textos... Sei, com bastante segurança, que dentre as faíscas que dão ignição ao meu escrever estão as injustiças, as desigualdades, a modernidade e (acho que principalmente) o sofrimento humano, matéria que me apetece como o faz um câncer ao oncologista. De minha parte, no que tange ao impulso inicial, à espoleta do artista, acho que disse tudo.
            Contudo, não escrevo aqui para isso. Ainda na linha do parágrafo anterior: escrevo inspirado por “A filosofia da composição”, de Edgar Allan Poe. Pretendo aqui não imitar o mestre, posto que seria uma luta perdida já de início, mas aproximar a minha prosa simplista à genialidade de Poe. No meu contexto, vou explanar meus processos de engenharia da prosa fictícia do meu conto “Outdoor”, menos por sua fama (por certo que não sou famoso) do que por sua progenitura. Alego, assim como o mestre, que não há tanta inspiração quanto há transpiração no meu texto; é antes um engenho projetado e construído do que um discurso por invocação das musas. Detenho-me mais longamente nisso: tenho pés firmemente apoiados num materialismo ímpar, de modo que não acredito em forças etéreas que possam vira manipular – nem para o bem e nem para o mal – a mente humana. Creio fortemente no funcionamento do ser humano como máquina, com seus fluídos próprios e seu maravilhosamente complexo sistema computacional Nesse meu olhar sobre a humanidade, tem lugar uma apaixonada defesa das potencialidades humanas, capazes, a meu ver, de produzirem as mais belas obras de arte sem nenhuma inspiração divina. Confio, sim e apesar de tudo, no ser humano.
            Dito isso, eu exponho meu processo criativo. A matéria, como eu mesmo já comentei, que mais me toca é a do sofrimento humano. Não é por acaso que é o elemento de desfecho do conto. Acentuando esse meu algoz, está algo que, creio eu, é característica própria da sociedade capitalista/consumista/individualista: o descaso de um ser humano para com o outro; no caso, para com o sofrimento do outro. Além disso, na minha condição de estudioso das Letras, toda mensagem criada merece ser lida, pois é expressão humana de algum tipo. A cidade de T. discorda, como visto. Por isso a combinação das três características: uma mensagem não lida, cuja não leitura ratifica o desprezo das pessoas pelo sofrimento de uma delas. Poucas coisas haveriam de me dar tanta aflição quanto essa monstruosidade. Encontrado o elemento significativo-simbólico central do texto, pus-me a delinear as suas periferias.
            Para tal, detenho-me novamente em outro aspecto contextual: faz alguns anos já que há na minha cidade, São Paulo, uma lei, chamada “Lei Cidade Limpa”, que regulamentou as formas de publicidade visual, eliminando da vista dos cidadãos os outdoors que poluíam imensamente a beleza local. Supus a mesma situação em T., com uma desculpa que me pareceu mais coerente do ponto de vista racional. Nova detenção: sou, ou pelo menos considero-me, uma pessoa bastante racional; a razão, contudo, encontra seu limite, a meu ver, exatamente numa emoção humana: o sofrimento. Basicamente minha única ressalva ao uso da razão é o sofrimento humano. Sob minha perspectiva, portanto, o zelo pela racionalidade como superior à emoção (ou, como gostariam os gregos, “λόγος” como superior ao “πάθος”) seria um objetivo nobre de uma cidade, sustentado até o final pelas políticas públicas. Contraposta a isso, a Universidade expunha, no conto, um dos pensamentos que considero mais perniciosos, mas talvez mais úteis quando se trata de erradicar o sofrimento[1]: a exaltação dos sentimentos confortáveis, como a alegria e a felicidade. Quis, com essa oposição entre a intenção da Cidade e a da Universidade, criar uma falsa dicotomia entre razão e sentimento, entre objetividade e subjetividade, entre verdade e publicidade. Deixei propositalmente que os sentimentos tristes fossem excluídos de ambas as posições, para aparecerem ao final como clímax do conto.
            O modo de narrar a história, ainda mais do que a oposição descrita no parágrafo anterior, foi friamente arquitetado, mas para explicá-lo antes tenho de discorrer sobre uma temática do conto, que sustenta todas as discussões sobre a legitimidade do outdoor. A temática à qual me refiro é a das instituições. Como pode ser observado, as ações humanas no conto só se passam no âmbito das instituições formais (a associação do bairro, a Subprefeitura, a Prefeitura, a Universidade etc.), o que denuncia minha inclinação ao desgosto por elas. A meu ver, o homem é mais pleno para exercer sua existência quando está livre das instituições inúteis que o cercam. No conto, é possível cogitar que as pessoas pudessem ter salvado o José L. do suicídio, se não tivessem entregado todo seu poder de ação às instituições às quais pertenciam ou se reportavam. A ação “humano a humano” é, a meu ver, muito mais legítima forma de interação do que aquela que se subordina às ficções institucionais. Como essa temática tinha que ser apresentada como natural e as instituições tinham que ser vistas pelo leitor como naturais até o momento do desfecho, pensei inicialmente em utilizar uma voz onisciente, que, por causa de sua impessoalidade, cumpre muito bem com as necessidades das instituições; minha opinião mudou quando concebi a mudança de valores que ocorreria no clímax da história. Essa mudança não poderia acontecer com um narrador impessoal, afastado das emoções humanas; teria que acontecer com uma personagem, narrando a história de acordo com sua perspectiva dos fatos. Como minha ênfase ainda estava na influência que têm as instituições sobre as pessoas, tratei logo de amarrar minha personagem-narrador a tantas instituições quanto pude sem que eu denunciasse minhas intenções. Pude, assim, criar uma personagem que estava indiferentemente colocada dentro de algumas instituições que a sufocavam sem que ela percebesse. Ela só o faz quando se depara com as medidas últimas das posições institucionais: o confronto violento. Quis, de certa forma, alertar para os perigos que enxergo no depósito total de confiança que as pessoas costumam fazer em relação às instituições e às visões ideológicas destas.
            Como elementos ainda presentes, mas secundários, está elencados alguns aspectos. A explicitação do tempo que as instituições levam para debater o caso do outdoor é minha crítica ao excesso de burocracia e, obviamente, de institucionalização da sociedade à qual pertenço. Outro: a ideia de alguém que se suicida após ter um pedido de ajuda negado é constituinte notável das minhas memórias da minha época de depressão; acho fortemente que todos os humanos compartilham de uma certa responsabilidade em relação aos outros seres humanos, justamente por compartilharem a humanidade como característica de si mesmos. Por isso, a falta de atenção da cidade pelo sofrimento de José L. levou às consequências extremas. Outro: a referência da qual tomei emprestado o nome é de José L. é o protagonista de “O Processo “, de Franz Kafka, que, assim como a minha personagem, possui uma versão do nome “José” e a inicial do sobrenome do seu autor. Ainda em referência a Kafka está a temática das instituições: em “O Processo”, o protagonista também encontra-se subordinado caoticamente a instituições confusas e que dominam os acontecimentos em torno dele.
            Numa retrospectiva, então, sumarizando os pontos que tentei colocar no conto (para alegria dos meus amigos que não se contentaram com a minha postura de “cada um interpreta o que quiser”) temos um desprezo pela subordinação humana às instituições, um aviso aos males do individualismo moderno, um apelo para que olhemos mais para os sentimentos alheios e um mórbido retrato do que teria acontecido à minha pessoa se eu não tivesse recebido a ajuda dos meus amigos.


[1] Sim, estou ciente do paradoxo de querer e não querer o sofrimento ao mesmo tempo. Prego, talvez utopicamente, o alcance da felicidade através da racionalidade. Se a felicidade irracional for a tese e o sofrimento racional, a antítese, eu espero que a síntese seja a felicidade racional.

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