domingo, 29 de setembro de 2013

FORTUNA - de William Kentridge

Fui hoje à Pinacoteca do Estado de SP e, por acaso, topei com a mostra "Fortuna", do sul-africano William Kentridge, contando com quadros, gravuras, esculturas, filmes etc. O autor utiliza predominantemente carvão nas suas composições, aplicando, desaplicando e reaplicando seus traços uns sobre os outros. Os tons vermelho e azul por vezes quebram a monocromia, mas são raros (e no entanto fundamentais para a obra). Do corredor externo para a área interna da mostra, vemos a primeira grande mudança fundamental de duas facetas da obra do autor: do lado de fora da mostra, vídeos que o retratam, sendo ele o ator de suas obras, que exploram alguns temas; dentro da sala principal da mostra, sua estética volta-se para sua produção gráfica, com os desenhos trabalhados principalmente com o carvão sobre o papel. Algumas considerações podem ser feitas em geral: o tom político de suas obras gráficas é fortíssimo, ainda que velado e contrapõem-se fortemente às obras que o retratam, que parecem buscar uma transcendência maior, além de um clima mais leve e mais humorístico. Em relação a particularidades, discorro a seguir:

MOSTRA EXTERNA: O HOMEM QUE FICOU vs. O HOMEM QUE PARTIU

A parte externa da mostra de Kentridge conta com alguns filmes (assisti a quatro) que apostam na sua atuação e em jogos de composição de câmera para passar sua mensagem. As temáticas que se colocam como fundo das obras (pelo que eu vi, todas) são fundamentalmente duas: a aula de desenho (como visto nos vídeos "Drawing Lesson") e o tempo. Em relação às Drawing Lessons, é curioso observar que todos os vídeos, pela reiteração de elementos e pelo próprio título, parecem remeter a aulas de desenho, como se o autor estivesse querendo indicar ao espectador como fazer desenho. Curiosamente, o desenho nos vídeos só parece fazer sentido quando colocado na perspectiva do movimento que estão sofrendo. Assim sendo, parece que o autor corrobora sua frase (tirada do folder da mostra):

"Quando era mais jovem, todos me diziam que, para ser bom em algo, é preciso ser espcializado. Se eu quisesse desenhar, deveria fazer apenas isso... Levei muitos anos para desaprender isso, para aprender que a única esperança de um desenho era se ele fosse, ao mesmo tempo, um desenho e parte de um filme. O que esta exposição faz é mostrar a indeterminação dos meios."

A outra temática, do tempo, percorre seus vídeos com precisão. Um metrônomo aparece em sua obra "Anti-Mercator" e seu tiquetaquear é incessante, pontuando a distinção fiel entre tempo e falta dele. É a recusa do tempo convivendo com a temporalidade, em substância concreta. No mesmo vídeo, a distinção entre a estaticidade e o movimento se faz patente com a sobreposição de um vídeo do autor correndo e de um outro vídeo que mostra uma mão desenhando uma caixa em volta do próprio autor correndo. Se está correndo dentro da caixa parada; a visão do autor divindo um desenho de uma reta temporal em partes iguais e opinando sobre a infinita divisibilidade do tempo se sobrepõe às páginas que, em oposição, mostram o texto escrito do "homem que ficou" contra o "homem que partiu", um com frases de planos "I will" e outro com realizações. O tempo permite a concomitância dessas formas, mas não permite que paremos. Em outro vídeo, a aparição de três versões do autor, cada uma fazendo uma ação (um lendo um texto, um alternando entre a trompa e o texto, e outro tocando a trompa com a ajuda de seu abafador/desentupidor de privada), contracenando com uma máquina que canta ópera parece, novamente, colocar na perspectiva da contemporaneidade quatro momentos da produção artística humana, no que respeita a junção de música e poesia.

MOSTRA INTERNA: RUPTURA E CONTINUIDADE, DESENHO E APAGAMENTO, BRANCO E PRETO - A ÁFRICA DO SUL EM DESENHO

Na mostra interna, os tons políticos do autor transparecem com força descomunal. Seus estudos de desenho se expõe na segunda sala, mostrando quadros em preto-e-branco marcados com auxiliares de desenho em vermelho: é a vocação intrutora reverberando o espírito das Drawing Lessons, mostrando ao espectador que a obra é técnica, e guarda em seu âmago e superfície todo artifício usado pelo desenhista.
Abundam também as obras feitas sobre outras fontes - páginas de enciclopédias, de livros, de revistas e jornais - que parecem dizer bem sobre a continuidade como tema do autor: nada é novo, tudo só existe sobre uma outra fonte. Um conjunto de cartazes de protesto jocoso sobre o portal da sala, escritos em vermelho sobre páginas de antigos livros reforça a imagem visual, lhe colocando ainda a força de pedir mudança usando como base o antigo.

Nas próximas salas da exposição, um conjunto de gravuras que foram usadas para a base dos filmes que o artista produziu de 1989 até 2012 são o chamativo, mas o importante está nas salas de projeção, onde estão expostos os curta-metragens que deixaram famoso o artista. A maioria deles baseia-se na constante ruptura que há entre os tons de preto e branco na obra: parecem constituir-se como a alma do artista. Não por acaso, porque Kentridge viveu na África do Sul desde seu nascimento, em 1955, vivendo, portanto, o período de apartheid que tanto opôs (como sua obra) negros e brancos. O impressionante movimento de seus filmes dá-se com o surpreendente efeito de se desenhar (com carvão) e apagar a figura para fazê-la mover-se, deixando, nesse processo, a marca do que havia sido desenhado antes: é a concretização visual da continuidade das ações, da inexistência da ruptura em si. O que é preto agora no segundo seguinte será branco, mas o  processo ocorreu e deixa marcas de si pelo caminho.

Em "Other Faces", a violência inerente a essa oposição é fundamental para o movimento da obra: a batida de carro, observada de uma perspectiva superior e depois no nível do solo, mostra um negro e um branco gritando um contra o outro, com o ponto alto da frase escrita "You fucken white man", se opondo à constante imagem do fotógrafo que tira fotos apenas dos negros, sendo, ele mesmo, branco.

Em "Weighing... and Wanting", a possível perda da mulher para uma doença surge com a imagem precisa do corte: uma massa disforme é cortada por linhas vermelhas que sobressaem aos olhos do espectador, revelando, com a metáfora da tomografia, a ruptura inerente à morte de um ente querido. As chagas da esposa que são substituídas pelas vigas de aço das torres de energia constituem imagem forte também. As imagens da esposa sendo apagadas e substituídas por objetos - em especial seus favoritos: o telefone, o mataborrão e a máquina de escrever - nos prende à perspectiva de não sobrar resquício do que passou, mesmo que esse resquício seja um traço de carvão mal apagado.

Já em "Stereoscope", a linha de telefones aparece concretizada em traços azuis que, atravessando a cidade, vão ligando e cortando as cenas urbanas, juntando cidadãos e criando uma barreira de si para si mesmo, colocado o autor como personagem. Ao final, apenas uma explosão pode tratar de aniquilar aquele único que não se conecta com o mundo todo.