domingo, 28 de outubro de 2012

OUTDOOR

Qual não foi a surpresa de todos os cidadãos quando, naquela fria manhã de vinte e cinco de abril - sim, abril faz frio por aqui -, José L. ergueu à frente de sua casa um outdoor luminoso branco com letras garrafais pretas, em caixa alta? A indignação atingiu níveis alarmantes. Paro nesse momento a minha narrativa (prometo que continuarei no próximo parágrafo) para explanar um ponto fundamental da legislação da minha cidade, o Município de T.: aqui é proibido erguer outdoors ou placas de comércio muito chamativas, a fim de proteger os munícipes da institucionalização da propaganda como portadora das verdades absolutas.

[Retomando:] A indignação atingiu níveis alarmantes. O Sr. José L. morava no bairro Jardim B., o qual possuía, desde os tempos da oligarquia, um órgão deliberativo, uma associação dos moradores chamada AMORJB. A Sra. e o Sr. J., da casa ao lado, foram os primeiros a prestar queixas, na reunião que sucedeu o ocorrido. Eu cito a ata (com propriedade, pois era o secretário de mesa da AMORJB à época): “O Sr. D., Presidente da Mesa, pediu calma aos presentes e abriu a Assembleia Extraordinária com o depoimento da Sra. J., residente à Rua W. - nº25 -, com uma reclamação de propaganda indevida no bairro.”

RECLAMAÇÃO DA SRA. J.: “Ontem pela manhã eu acordei com a pulga atrás da orelha, bem sabe o J. que eu tenho sexto sentido pra essas coisas, pra malandragem do José L., o J. sabe, aquele sem-vergonha. Pois não é que eu ‘tava certa de novo, gente! O mau caráter do José L. colocou um maldito dum outdoor na frente da casa dele! ‘Tá impedindo o sol de secar minhas roupas ao meio-dia!”

Aí então a assembleia virou uma bagunça completa, ninguém entendia nada que não fosse reclamações sobre o José L., aquele salafrário. Pois afinal (já que tudo se resolve somente no final das coisas) decidiu-se levar o caso à Subprefeitura da Zona 3, onde estava localizado o Jardim B. O Subprefeito, Coronel R., localizou seus assistentes para debater a questão, como disse a Gazeta do dia seguinte. Houve três reuniões, ou cinco, ninguém soube me dizer muito bem (apesar de eu ter amigos que trabalhavam na Subprefeitura) se essas duas reuniões - essa margem de erro - foram reuniões mesmo ou somente almoços solenes do Coronel. O que eu mesmo vi foi, na manhã seguinte à quinta (ou terceira) reunião, o Coronel em pessoa entrando no Palácio da Prefeitura.

A cidade parecia respirar pesadamente durante toda a manhã. Não havia um transeunte que não parasse e olhasse apreensivamente para as antigas portas de madeira, com o hino da cidade inscrito em cobre fundido, que abriam-se imponentes e acolhedoras aos cidadãos e suas queixas formalizadas. Soube disso, contudo, só à noite, quando meu pai, dono da banca de jornais em frente à Prefeitura, contou-me que nada havia sido decidido naquele dia.

Uma semana depois, enquanto eu passava pela Praça Imperial, vi a aglomeração em torno do Palácio da Prefeitura. Sobre os degraus de granito estavam o Prefeito, um palanque e dúzias de repórteres dos jornais e das rádios que disputavam com seus microfones uma brecha no raio de alcance da voz do palestrante. Encostei-me à banca do meu pai para ouvir o rádio: “... e decidimos aqui na cúpula dos secretários do Município que o assunto do outdoor, erguido à Rua W. pelo famigerado Sr. José L. não cabe ao Executivo, senão às instâncias jurídicas dessa cidade tão gloriosa...” e continuava.

Estava, à época, com meus vinte e cinco anos, o que justifica minha amizade com membros do corpo discente da Universidade local - importante instituição da Cidade. Meus amigos contaram-me o que acontecia dentro dos portões da academia: os semioticistas, os filósofos, os matemáticos e até mesmo os teólogos debruçaram-se sobre a matéria do outdoor. A Escola Estética da Universidade propunha novos paradigmas baseados nas revoluções que a mídia haveria de sofrer com esse choque, especialmente no que tangia à manipulação de informação objetiva. Havia décadas que a publicidade em T. sofria com uma censura grande a tudo que pudesse dominar ou subjugar os pensamentos racionais dos cidadãos. Os sentimentos, como matéria menos digna de confiança que era, foram deixados de lado até esse momento, o das discussões acadêmicas, as quais propunham que a publicidade, dali em diante, estivesse a serviço da felicidade local, pouco importando as verdades absolutas ou os sentimentos negativos.

Havia, contudo, um primo meu - que se mudou depois para outro estado - que trabalhava no Tribunal Municipal por aqueles tempos. M. era apenas um funcionário administrativo, levava documentos àqui e àli nos corredores do Palácio da Justiça. Consta em seus registros (até mesmo hoje em dia, depois de tudo que aconteceu) que nunca incorreu em infração regulamentar ou quebra de decoro de sua profissão, apesar do que lhes confessarei agora: M., no calor da situação que ameaçava a cidade, pôs-se como vigilante popular e abriu um envelope (ele já mora em outro estado; posso dizer do envelope: confidencial!) que não continha outra coisa que não o trâmite judicial contra o Sr. José L. Nesse momento, já fazia uma semana da pronunciação do Prefeito, tempo incrivelmente curto para uma questão judicial, mas uma eternidade no contexto de tamanha contravenção. Lá em casa, todos soubemos rapidamente, por causa do meu primo, o que aconteceria ao maldito José L. Não me lembro exatamente das sentenças - até porque não sou jurista -, mas se eu me pusesse a reescrevê-las, creio que teriam certamente semelhanças confiáveis com o seguinte:

Seria “Sentença do Processo nº2562525, do Município de T. - Processo: Promotoria vs. Sr. José L.; sentença final da primeira instância judicial: 1. Caberá ao Sr. José L., residente à Rua W. - nº24 -, a remoção do pernicioso “outdoor” erguido no endereço citado, provendo ao Estado a quantia necessária a essa remoção; 2. Sob tutela da Polícia Militar, está sentenciado o Sr. José L. a dez anos de reclusão por executar ato ilícito tão odioso e contrário à moral e à lei do Município de T.” ou coisa que o valha.

Nós, lá de casa, que dependíamos da venda dos periódicos para garantir nosso sustento, tratamos logo de enviar - sob cuidadoso anonimato - uma cópia da sentença à Gazeta, a fim de que a tiragem da semana seguinte fosse garantidamente grande e a banca do meu pai tivesse bons lucros. No dia seguinte estava instaurado e promulgado o pandemônio completo. As pessoas, praticamente todas as pessoas - eu, inclusive - saíram às ruas. Não havia dúvida do que aconteceria ou para onde estavam todos indo: a Rua W. - nº24 - receberia uma horda enfurecida à sua porta. Como todos, fui. Chegando lá, a aglomeração já se mostrava perigosa; havia um embate na iminência de acontecer, uma faísca parecia irradiar dos dois grupos que se antagonizavam em plena Rua W. De um lado, a AMORJB e a Polícia Militar exigiam que fosse desfeita a barricada e que o Sr. José L. fosse entregue a eles; do outro, a comunidade acadêmica da Universidade local havia construído a já mencionada barricada a fim de proteger o visionário Sr. José L. daqueles censores que queriam impedir um avanço estético e filosófico do Município. De um lado, a verdade objetiva lutava por seu domínio pré-estabelecido; do outro, a ideologia da propaganda da felicidade buscava trazer o hedonismo de volta do túmulo em que a razão o colocara.

A batalha, enfim, deflagrou-se. Tiros de borracha e cadeiradas, vassouradas e pauladas foram distribuídas a torto e a direito. Uma ou duas caixas de madeira passaram voando pela minha orelha. Na multidão pisoteada eu vi dois amigos universitários atracando-se com meu primo. Engatinhando sob aquela batalha digna de um poema épico, esgueirei-me até a proteção da mureta da casa do nº24. Havia sido uma péssima ideia ir àquele campo de batalha urbano. Eu só pensava em me esconder. Na minha fuga, desviei do que me pareceu na hora uma viga de aço - mais tarde soube que era o pé do outdoor - e entrei correndo na casa do próprio nº 24. E aí veio a surpresa.

Eu paro minha narração aqui novamente. Preciso dar algumas explicações antes de continuar; do contrário, quem me lê não entenderá alguns pontos do que está para acontecer. Não que realmente haja necessidade de estabelecer algum contexto: acho que o que realmente precisava ser dito já o foi. Falta, contudo, na minha opinião, um detalhe fundamental: o porte de armas em T. era irrestrito. Depois dessa leve digressão, retomo.

[Retomando:] E aí veio a surpresa. José L. jazia morto, já fétido, em decomposição no hall de sua casa. Uma arma pendia de sua mão já frouxa, já cheia de moscas ao redor. O que me enojou em especial foi o fato de a parede e o chão estarem sujos com os miolos e o sangue já escuros e coagulados que espirraram de seu crânio partido. Até mesmo antes do laudo da Polícia Científica ser notificado na Gazeta, eu sabia afirmar: suicídio.

Saí atabalhoado, gritando da casa nº24. A batalha parou: todos achavam que de dentro da casa só poderia sair o Sr. José L., mas a visão da minha pessoa gritando fê-los todos tremerem. “José L. está morto!”, eu gritei; “Se suicidou!”. O povo de T., muito religioso, voltou seus olhos para os céus, para rezarem pela alma do pobre José L. E foi aí que nós todos lemos o terrível, o agourento, o mórbido e desesperado outdoor luminoso branco com letras garrafais pretas, em caixa alta, que dizia:

ESTOU SOFRENDO
ALGUÉM ME AJUDE