sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Ninguém Escreve ao Coronel

Às vezes se sente perdido
Debaixo da paletó azul,
do quepe de aviador
e das insígnias prateadas,
ninguém lhe escreve

Ninguém lhe escreve por causa de quem?
Não por causa dos outros,
que ainda se escrevem uns aos outros
Por culpa dele

Foi culpa dele querer a vitória.
Foi culpa de todos a sua volta.
Foi culpa dele ter que conseguir sucesso
às custas da distância e da guerra.

Quem sabe ele tivesse sido um bom jornalista,
professor,
advogado,
poeta.
Mas não foi
Foi tão-somente Coronel
O melhor Coronel, mas somente Coronel

Foi bom Coronel desde que era Cadete
Altivo,
garboso,
elegante,
solitário
Coronel.

E o seu êxito ali o fez esquecer-se daqui.
Daqui onde era amado sem suas platinas.
Daqui onde era querido sem estratégia.
Daqui onde era só ele-mesmo.

O esquecimento dele caiu no esquecimento;
As pessoas continuaram se vendo,
Os carros continuaram passando,
As garotas continuaram beijando os garotos.
mas e o Coronel?
Ninguém escreve ao Coronel.

Conheço Seu Jogo, José

Te vi jogando bola hoje, José
Seu jogo é bom, José
Dá futuro
Melhor!, dá presente.

Seu jogo é rápido, José
Suas pernas são mais rápidas do que compridas
Enganam mais do que fazem
Fingem mais do que são

Seu jogo, José, é forte
Depende do corpo, e pouco da alma
Depende dos olhos, cabelo, roupas e de parecer melhor que os outros
E se molda, como massa de modelar, às tendências
Você nunca fica por fora, José

Seu jogo é tenso, José
Você só joga se for pra ganhar
Só ganha
Sempre ganha
Ganha não de si mesmo, mas dos outros
Ninguém ganha de você, né, José?!

E o melhor (ou pior) de tudo, José
Seu jogo funciona!
Funciona mais que meu xadrez e minhas palavras outonais
Funciona mais que o humor e bem mais que a inteligência
Seu jogo de egos (no qual o seu é sempre mais forte, mais bonito, mais bem penteado e bem vestido) ganha, José
Seu jogo funciona!, José

E o meu, não.

Vi a vida passar por mim hoje

Eu vi a vida passar por mim hoje
Não amargurada
Não triste
Não a minha vida
a Vida

A vida veio de longe
bengala na mão, cabelos brancos, rugas profundas
vinha vestindo uma calça marrom, uma camisa velha e um casaquinho
segurava uma sacola de supermercado contendo as mil-maravilhas ou os sete-pecados, não sei...
E, enquanto eu via a vida vindo, pensei:
"Tenho que falar com a vida! Perguntar-lhe o que a por vir, o que ela já viu..."
Mas não tive coragem

Não tive coragem porque a vida não está aqui pra que a gente pergunte as coisas para ela
A vida não está aqui pra que a gente pergunte
"Do que é feita sua bengala?
Quando você comprou essa roupa?
O que tem nessa sacola?
Você já foi feliz, Dona Vida?"
A vida está aqui pra que a gente viva ela
Somente VIVA

E o pior de tudo:
enquanto pensava o que descrevi,
a vida passou por mim
hoje
ontem
e amanhã.