domingo, 29 de setembro de 2013

FORTUNA - de William Kentridge

Fui hoje à Pinacoteca do Estado de SP e, por acaso, topei com a mostra "Fortuna", do sul-africano William Kentridge, contando com quadros, gravuras, esculturas, filmes etc. O autor utiliza predominantemente carvão nas suas composições, aplicando, desaplicando e reaplicando seus traços uns sobre os outros. Os tons vermelho e azul por vezes quebram a monocromia, mas são raros (e no entanto fundamentais para a obra). Do corredor externo para a área interna da mostra, vemos a primeira grande mudança fundamental de duas facetas da obra do autor: do lado de fora da mostra, vídeos que o retratam, sendo ele o ator de suas obras, que exploram alguns temas; dentro da sala principal da mostra, sua estética volta-se para sua produção gráfica, com os desenhos trabalhados principalmente com o carvão sobre o papel. Algumas considerações podem ser feitas em geral: o tom político de suas obras gráficas é fortíssimo, ainda que velado e contrapõem-se fortemente às obras que o retratam, que parecem buscar uma transcendência maior, além de um clima mais leve e mais humorístico. Em relação a particularidades, discorro a seguir:

MOSTRA EXTERNA: O HOMEM QUE FICOU vs. O HOMEM QUE PARTIU

A parte externa da mostra de Kentridge conta com alguns filmes (assisti a quatro) que apostam na sua atuação e em jogos de composição de câmera para passar sua mensagem. As temáticas que se colocam como fundo das obras (pelo que eu vi, todas) são fundamentalmente duas: a aula de desenho (como visto nos vídeos "Drawing Lesson") e o tempo. Em relação às Drawing Lessons, é curioso observar que todos os vídeos, pela reiteração de elementos e pelo próprio título, parecem remeter a aulas de desenho, como se o autor estivesse querendo indicar ao espectador como fazer desenho. Curiosamente, o desenho nos vídeos só parece fazer sentido quando colocado na perspectiva do movimento que estão sofrendo. Assim sendo, parece que o autor corrobora sua frase (tirada do folder da mostra):

"Quando era mais jovem, todos me diziam que, para ser bom em algo, é preciso ser espcializado. Se eu quisesse desenhar, deveria fazer apenas isso... Levei muitos anos para desaprender isso, para aprender que a única esperança de um desenho era se ele fosse, ao mesmo tempo, um desenho e parte de um filme. O que esta exposição faz é mostrar a indeterminação dos meios."

A outra temática, do tempo, percorre seus vídeos com precisão. Um metrônomo aparece em sua obra "Anti-Mercator" e seu tiquetaquear é incessante, pontuando a distinção fiel entre tempo e falta dele. É a recusa do tempo convivendo com a temporalidade, em substância concreta. No mesmo vídeo, a distinção entre a estaticidade e o movimento se faz patente com a sobreposição de um vídeo do autor correndo e de um outro vídeo que mostra uma mão desenhando uma caixa em volta do próprio autor correndo. Se está correndo dentro da caixa parada; a visão do autor divindo um desenho de uma reta temporal em partes iguais e opinando sobre a infinita divisibilidade do tempo se sobrepõe às páginas que, em oposição, mostram o texto escrito do "homem que ficou" contra o "homem que partiu", um com frases de planos "I will" e outro com realizações. O tempo permite a concomitância dessas formas, mas não permite que paremos. Em outro vídeo, a aparição de três versões do autor, cada uma fazendo uma ação (um lendo um texto, um alternando entre a trompa e o texto, e outro tocando a trompa com a ajuda de seu abafador/desentupidor de privada), contracenando com uma máquina que canta ópera parece, novamente, colocar na perspectiva da contemporaneidade quatro momentos da produção artística humana, no que respeita a junção de música e poesia.

MOSTRA INTERNA: RUPTURA E CONTINUIDADE, DESENHO E APAGAMENTO, BRANCO E PRETO - A ÁFRICA DO SUL EM DESENHO

Na mostra interna, os tons políticos do autor transparecem com força descomunal. Seus estudos de desenho se expõe na segunda sala, mostrando quadros em preto-e-branco marcados com auxiliares de desenho em vermelho: é a vocação intrutora reverberando o espírito das Drawing Lessons, mostrando ao espectador que a obra é técnica, e guarda em seu âmago e superfície todo artifício usado pelo desenhista.
Abundam também as obras feitas sobre outras fontes - páginas de enciclopédias, de livros, de revistas e jornais - que parecem dizer bem sobre a continuidade como tema do autor: nada é novo, tudo só existe sobre uma outra fonte. Um conjunto de cartazes de protesto jocoso sobre o portal da sala, escritos em vermelho sobre páginas de antigos livros reforça a imagem visual, lhe colocando ainda a força de pedir mudança usando como base o antigo.

Nas próximas salas da exposição, um conjunto de gravuras que foram usadas para a base dos filmes que o artista produziu de 1989 até 2012 são o chamativo, mas o importante está nas salas de projeção, onde estão expostos os curta-metragens que deixaram famoso o artista. A maioria deles baseia-se na constante ruptura que há entre os tons de preto e branco na obra: parecem constituir-se como a alma do artista. Não por acaso, porque Kentridge viveu na África do Sul desde seu nascimento, em 1955, vivendo, portanto, o período de apartheid que tanto opôs (como sua obra) negros e brancos. O impressionante movimento de seus filmes dá-se com o surpreendente efeito de se desenhar (com carvão) e apagar a figura para fazê-la mover-se, deixando, nesse processo, a marca do que havia sido desenhado antes: é a concretização visual da continuidade das ações, da inexistência da ruptura em si. O que é preto agora no segundo seguinte será branco, mas o  processo ocorreu e deixa marcas de si pelo caminho.

Em "Other Faces", a violência inerente a essa oposição é fundamental para o movimento da obra: a batida de carro, observada de uma perspectiva superior e depois no nível do solo, mostra um negro e um branco gritando um contra o outro, com o ponto alto da frase escrita "You fucken white man", se opondo à constante imagem do fotógrafo que tira fotos apenas dos negros, sendo, ele mesmo, branco.

Em "Weighing... and Wanting", a possível perda da mulher para uma doença surge com a imagem precisa do corte: uma massa disforme é cortada por linhas vermelhas que sobressaem aos olhos do espectador, revelando, com a metáfora da tomografia, a ruptura inerente à morte de um ente querido. As chagas da esposa que são substituídas pelas vigas de aço das torres de energia constituem imagem forte também. As imagens da esposa sendo apagadas e substituídas por objetos - em especial seus favoritos: o telefone, o mataborrão e a máquina de escrever - nos prende à perspectiva de não sobrar resquício do que passou, mesmo que esse resquício seja um traço de carvão mal apagado.

Já em "Stereoscope", a linha de telefones aparece concretizada em traços azuis que, atravessando a cidade, vão ligando e cortando as cenas urbanas, juntando cidadãos e criando uma barreira de si para si mesmo, colocado o autor como personagem. Ao final, apenas uma explosão pode tratar de aniquilar aquele único que não se conecta com o mundo todo.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Incomunicável

Vou produzir uma obra
a mais magnífica obra
que ninguém vai entender

Fundirei no mais puro bronze
um grande, altivo Belerofonte
mas ninguém vai entender

Pintarei magníficas telas
cantarei as canções mais belas
apesar de ninguém entender

Tentarei toda sorte de gênero
do baixo ao alto, além do ameno
pena que ninguém vai entender

Cansado, com fome, aflito
lançarei mão de um único grito
"Alguém vai entender?"

No final, acabará o problema
eu farei meu próprio poema
para ninguém mais entender.

terça-feira, 30 de abril de 2013

Câmbio


fiquei pensando hoje o dia todo o quanto eu não consigo me comunicar com a maioria das pessoas
e falar o que eu sinto e penso com clareza
e ser entendido
sei lá
me senti um estrangeiro
perdido contra a turba
as palavras me magoam
porque estão reverberando na minnha cabeça
e me trazem a tona tudo que eu já cometi de erro
logo eu que quero cometê-los poucos

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O Ronco dos Pássaros


            Eram muitos tiros sobre nossas cabeças, assim como muitos aviões. Os tiros intermináveis, os avios esporádicos... Todo dia era fome, sede e sono, todo dia a mesma fome, a mesma sede e o mesmo sono, cada dia piores, dizíamos que era a mesma mais para nos reconfortarmos do que por serem mesmo a mesma fome, o mesmo sono, a mesma sede; a verdade é que não eram, cada dia eram piores, tanto a fome, quanto a sede, quanto o sono, nenhum dos três nunca cessavam, só aumentavam e aumentavam e aumentavam e os dias eram mais longos e as noites de ronda, mais curtas (quando estávamos  na ronda, eram mais longas). As noites tornavam-se mais frias com o passar do tempo, O inverno ta chegando, dizia o Marco, que fazia a contagem dos dias para nós, porque era o único que tinha vindo com caderno e ele havia numerado, ah, o Marco era esperto mesmo, desde a época de escola, a gente estudou junto, o Marco havia numerado as páginas do caderninho que ele trouxe, no começo todo mundo achou Que babaquice, esse nerd na guerra só vai atrapalhar o Pelotão; mas o Marco não, podia ser nerd, mas ele sabia pensar direito, e agora já todo mundo agradecia que ele tinha trazido o (Bendito caderninho, hein, Marco!) bendito caderninho dele, que meio que deixava todo mundo são, era uma espécie de ligação nossa com a realidade, que tinha ficado lá em casa; aquela realidade do dia a dia, de chegar em casa do trabalho e encontrar a mãe e a irmã, essa realidade de verdade, das coisas que acontecem; não da guerra, essa não acontece de verdade verdadeira, acontece só em filme de Hollywood, com ator famoso, ganhador do Oscar; mas a nossa realidade virou aquela de filme, em que tem mocinho e o sargento malvado e as latrinas pra limpar (mas isso só no treinamento, ainda bem) e os pentes de bala e Toma aqui esse fuzil, seu verme! E toca a gente com lama até o joelho atravessando a floresta, que agora já tava frio, de acordo com o Marco já é 25 de maio já, meu aniversário mesmo passou e eu nem vi, porque ainda não tinha juntado o Pelotão – o Marco era da XXVII Cia. e eu era da XXVIII, sou médico de formação, né, e essa Cia. tava sem – e sem o Marco nem o Capitão Augusto sabia da data e isso porque ele tinha um relógio todo incrementado, era de família rica o Capitão, isso dava pra ver, era daqueles que o pai tinha sido Coronel e o avô também, porque ele mesmo não tinha nada que prestava pra guerra que a gente tava enfrentando, talvez se fosse uma guerra da carteira dele contra a roupa cara da loja ele talvez ganhasse, mas nem assim, porque era no fundo um filhinho de papai, caiu nessa porque era bonito e acabou se lascando, até pior que eu, porque eu pelo menos não tinha que mandar em ninguém, meu negócio era só curar quem tivesse com um tiro na coxa ou algo do tipo (eu digo curar, mas na verdade era embebedar o homem de cachaça barata mesmo e torcer pra ele não acordar enquanto eu tivesse arrancando a bala, mais do que isso não era da minha alçada não). E eu acho que até o Capitão percebia essa minha vantagem sobre ele, porque ficava me olhando com uma cara estranha de vez em quando, se eu dava uma ordem prum soldado me pegar uma gaze, me olhava; se era uma recomendação pro sargento que foi baleado, me olhava; acho mesmo é que o Capitão gostava de olhar pras pessoas porque, a bem da verdade, só me olhava estranho, o riquinho (como a gente chamava ele, era de Coronel Riquinho, porque a gente dizia que ele era tão afetado que devia ganhar soldo de Coronel pra manter toda aquela pose).
            E já era pra lá de meia-noite, Ou seja, já é dia vinte e sete, disse o Marco, quando a gente chegou naquela cidade, que puxa vida!, que cidade estranha, pois que estava no meio da linha de combate e não estava a) destruída nem b) povoada pelo inimigo. Era a coisa mais estranha do mundo aquela loucura de cidade que não tinha ninguém mas tinha cara de que tinha tido, mas não tinha cara de que tinha sido invadida, mas tinha cara de que Se fosse pra ser invadida, já tinha sido, disse o Capitão num arroubo de liderança, porque normalmente ele nem falava nada, nem coisas óbvias como essa. E a cidade ‘tava lá, meio distante? da gente, sei lá, porque era como se nunca tivesse sido tocada, mas como que uma cidade nunca tocada teria sido construída, né?, Isso pra mim parece é sonho, disse o Do Carmo com aquele sotaque cearense e todo mundo deu risada e eu vi nos olhos de todo mundo – e teria visto no meu porque estava sem espelho, mas se tivesse com um, eu tinha visto também – um olhar de quem acabava de ver o Mágico de Oz e sorrir ternamente com os sapatinhos de rubi no Kansas, um olhar de quem descobre uma realidade meio que posta no lugar errado, posta fora de si, como quando a gente vê alguém muito calmo explodir de raiva, ou alguém muito bravo sendo carinhoso com a namorada; sei que no fundo todo mundo tinha visto um sonho e acreditado nele e de repente não acreditava mais, mas tava com vergonha de ter acreditado, que nem aquela última criança da sala que descobre que Papai Noel não existe; tudo isso nos primeiros milésimos, milionésimos de segundo em que todos riram da frase do Do Carmo, mas aí todo mundo olhou de novo e viu que o sonho não tinha desaparecido e que ‘tava lá, não nossa frente a cidade que, pela cara, devia ser uma cidade pequena, mas também não tão pequena assim, porque a gente não conseguia ver o final dela de cima do morro, era ali como fosse uma serra, e a cidade ficava no meio do vale, mas escorregava pra dentro de um outro vale, parecendo até um pouco que ela corria junto com o rio que ficava no meio dela e que, de onde a gente ‘tava, dava pra ver que dava apoio, nas margens, pra várias pontezinhas, uma a cada duzentos, trezentos metros, não dava pra ter certeza, a gente ‘tava meio longinho mesmo, acho que uns três, quatro quilômetros, coisa assim, o Marco fica querendo dar uma de espertão, fica falando que São três vírgula setenta e cinco quilômetros, Capitão, mas a gente fala que deve ser uns três e fica por isso mesmo, só quem gosta dessas frescuras do Marco é o afetado do Capitão, Coronel Riquinho, haha, mas sei que é isso mesmo, no nosso passo a gente vai levar uma hora, por aí, que a gente ‘tá num passo de marcha muito lento, porque tem dois aqui, o Vicente e o Fernandes, ‘tão baleados e andam mais devagar, isso é normal, faz parte desse nosso sonho do absurdo, essa guerra, essa guernica; já dizia um amigo meu que Se você vai ao Teatro do Absurdo, só pode esperar ver o Absurdo, o que nunca fora tanta verdade pra mim quanto é hoje. Hoje, dia 27/05, estou com o 43º Pelotão de Infantaria, vinte e sete bravos homens, uns feridos, outros doentes, alguns somente cansados, todos com medo da cidade que se estende aos nossos pés, misteriosa e silenciosa. Misteriosa e silenciosa até demais.
            Adentramos o portal da cidade, Bienvenidos a la ciudad de Sta. Rita de los Pájaros, dizia a placa de entrada, É Santa Rita dos Pássaros, só que em espanhol, nos disse o Capitão, muito desnecessariamente, porque nem o Oliveira, que só tinha até a quarta série, não saberia que essa era a tradução do que estava escrito na placa de azulejos brancos na entrada da cidade; era bom que pelo menos sabíamos onde estávamos, era Sta. Rita de los Pájaros, se alguém perguntasse Onde está o Pelotão, Capitão? (isso se o rádio voltasse a funcionar) pelo menos o coitado do Coronel Riquinho podia dizer com certeza ao superior dele Estamos, com absoluta certeza, em Sta. Rita de los Pájaros, Major!, o que lhe daria pelo menos um pouco mais de credibilidade junto ao Major, que julgava (muito corretamente) que o Capitão não passava de um paspalho, mas o que haveria de se fazer?, ele era Capitão, deveria comandar um Pelotão, naturalmente. Naturalmente, também, não possuía culhão para tal, mas isso pouco importava, teria de servir, pois só havia ele mesmo; do Quartel-General, tenho certeza, estariam falando agora da pena que foi perder aquele Pelotão no meio da selva, estava agora incomunicável, Mas é claro, com aquele comandante palerma, lógico que se perderiam, diria o Coronel ao saber da notícia; mas isso se eles tivessem mesmo se perdido e nós não nos perdemos, sei eu bem, porque estamos, obviamente, em Sta. Rita de los Pájaros, que bendita santa era essa, eu não sabia dizer, mas que os mais católicos já estavam rezando em seu nome, ah, isso já estavam mesmo, certos eles, que rezam por todos nós, melhor que o Santana, que fica ali, quieto no canto, metido a ateu, que sei lá o quê, é comunista, coisa assim e é por isso que nem acredita em Deus e nem reza pra santa nenhuma, quanto mais essa que ninguém conhece – mas a gente mais simples reza mesmo assim, vai que dá certo, né?!.
            O negócio é que lá estávamos, na bendita Sta. Rita, padroeira dos soldados perdidos (se não fosse, acabava de virar), e fomos logo entrando na cidade, chamando  por moradores, mas como saber se haveria inimigos nos esconderijos, nos becos da misteriosa santa, naquelas ruelas todas que mais pareciam tiradas de um cartum do ligeirinho, parecia que estávamos no México, mas num México no meio da mata fechada, sei que havia aquelas lojinhas com toldos de lona amarelada, uns vasos de barro ali do outro lado, um poço no meio da praça, bem aquele cenariozinho que a gente vê em filme mesmo, só faltava aparecer o caubói americano, o Charles Bronson, alguém assim, pra ver se ia rolar um duelo em praça pública, mas não, não veio Charles nenhum, nem bola de feno passando atrás do cenário não tinha nessa cidade esquisita. Oxente que isso aqui tá mais é parecendo minha cidade quando fomo pro Sul, falou bem alto o Do Carmo, que fez todo mundo rir alto, todo mundo querendo mesmo uma desculpa pra poder não ficar tenso e o Do Carmo arranjou bem essa, fez até o Santana rir, mesmo ele que nunca achava nada bacana nem engraçado, mas nessa ele não aguentou e riu mesmo. Nessa hora foi que eu dei por mim uma coisa estranha, que parece que ninguém tinha reparado, foi que os barulhos de tiro, antes tão frequentes, tinham sumido, a floresta escondeu os tiros da gente, escondeu os tiros e os aviões, nenhum mais passava na nossa cabeça, fazendo a gente se jogar no primeiro buraco que visse, que nem tatu apavorado quando sente cheiro de onça; mas nem isso não tinha mais, barulho de tiro, tanque, avião, nada disso a gente tava ouvindo, foi aí que eu chamei o Capitão no canto e falei Capitão, o senhor deve ter reparado que não tá mais passando avião e nem tem mais barulho de tiro, o que o senhor acha que tá acontecendo?, o que eu acho que foi informação demais pro coitado do Coronel Riquinho, que deu uma bela duma travada e ficou bem uns cinquenta segundos pensando no que fazer em relação a isso e depois dos cinquenta segundos ele me disse Tenente, você sabe que os homens tão precisando é de apoio, mas não vamos falar nada, que não é bom a gente ficar criando esperança, quem for percebendo vai percebendo e pronto, tá., e eu Sim, senhor, Capitão e continuamos a nossa procura por algum sinal de vida naquela cidade meio estranha que a gente tinha chegado.
            Umas duas horas já tinham passado quando a gente chegou no que parecia um hotel, uma pousada, coisa to tipo, paramos e entramos e estava tudo como um hotel normal em dia de serviço, só que sem ninguém, sem viv’alma que pudesse dar informação ou pelo menos alugar um quarto pra eles, que eles estavam mortos de fome e de cansaço. Vasculhando o hotel – Hotel Dornelles, estava escrito atrás da bancada da recepção, entalhado na madeira, junto daqueles nichos onde ficam as chaves quando os hóspedes não estão, os nichos cheios de chaves, porque, visivelmente, não havia nenhum hóspede naquele hotel e em nenhum outro da cidade – certificaram-se de que não havia ninguém e não havia mesmo ninguém no Hotel Dornelles.
            Tendo analisado cada pedaço de Hotel, os homens ficaram bem mais tranquilos, mesmo eu fiquei mais tranquilo, mesmo eu que sou desconfiado até de abraço de mãe, eu fiquei mais calmo com a solidão do Hotel Dornelles, só quem não ficou foi o Santana, voltou à mesma carranca de antes da piada do Do Carmo, aquele Santana era um esquisito mesmo e não fosse ser tão na dele e tão obediente o Capitão teria até medo dele, eu sei disso e sei bem, porque até eu teria medo do Santana – sujeitinho mais estranho, viu?!, ninguém nem sabia de onde tinha vindo; porque no começo a gente acaba apelidando o sujeito é pelo Estado dele, o Do Carmo era o Cearense, o Vicente era o Carioca, eu mesmo os meninos chamavam de Tenente Paulista (eu nem ligava, deixava eles chamarem , que assim ficava todo mundo mais unido). Mas o Santana não, ninguém nem falava com ele, quanto mais saber de onde ele era – e, no fundo, todo mundo tinha era uma certa expectativa... Sei é que na solidão do Hotel Dornelles cada dois escolheram um quarto pra dividir – fiquei com o Coronel Riquinho, porque só tinha nós dois de oficial, e sabe como ele é, né, basta uma chance que ele ‘tá reclamando sua patente pra cá e pra lá – porque assim um protegia o outro se acontecesse alguma coisa e dividimos (eu dividi, o Capitão ficou do meu lado fazendo, tentando fazer cara de mau) todos nos quartos e cada quarto ia fazer só um pouquinho de ronda, né, dois quartos por vez, um aqui em cima, outro lá no térreo, assim ficava certinho; ficaram no fim catorze quartos mesmo, porque o Santana insistiu de dormir sozinho, mesmo com o Capitão mandando fazer um trio, mas ele sabia que o Capitão tinha medo dele, então foi e pegou o último quarto sozinho mesmo e falou que ia fazer a ronda sozinho também, que não tinha problema, ele dava conta, e Bom, eu é que não questiono o hômi, disse o Do Carmo assim que o Santana foi pro quarto dele e todo mundo caiu na gargalhada de novo.
            Todo mundo já estava colocado, muito bem instalado no próprio quarto e o Vicente e o Fernandes a gente pôs pra ficar nas janelas do último andar, meio de guarda, porque não podiam ajudar de outro jeito, então ficaram de sentinelas nos quartos da frente do hotel, a gente até arranjou uns antibióticos lá e eu dei pra eles, pra ver se pelo menos baixava a febre dos dois; o Oliveira foi pra cozinha e Deixe comigo que eu faço a comida, porque lá no Paraná eu trabalhava em restaurante, ele disse, então tudo bem, Você vai pra cozinha, Oliveira, onde ele achou um monte de comida na despensa, que ia dar bem pra gente ficar uma semana ou mais um pouco e Quando acabar a gente vai e pega nas casas, não tem ninguém mesmo!, o que foi uma notícia boa pra caramba, deu uma boa animada no pessoal, que já ‘tava cansado de ter que ficar comendo banana na floresta e economizando ração-de-campanha – ração essa que o Oliveira repôs a de todo mundo – e bebendo água barrenta de orquídea na selva.
            As rondas iam noite afora, sempre dois homens no térreo, dois no andar de cima, o dos quartos, eu e o Capitão fazíamos nas primeiras horas da noite, porque daí nosso sono era contínuo, Regalia de oficial, sabe como é, né, Tenente?, dizia pra mim o Capitão, durante a nossa ronda e eu nem me importava, era pouco tempo pra cada um; desde que todos tivessem o mesmo horário, estranho ainda era o Santana, ia sozinho pra ronda e ainda ficava lá no térreo, mas quem ia ter culhão pra desafiá-lo com aquele jeito estranho de quem ‘tá meio escondendo alguma cosia, tramando algum plano... Era um cara estranho mesmo, disso eu sei.
            Passaram três dias e já era dia trinta e um de maios, um frio de rachar, mas o aquecimento do Hotel Dornelles era o bastante pra manter todos quentes e , não tinha jeito, tínhamos que usar o aquecedor mesmo; devia estar lá pelos doze, treze graus, Treze mas com sensação térmica de onze vírgula cinco, disse o Marco, Ah, Marco, quem quer saber dessas suas bobagens?, replicou o Oliveira durante o almoço, que era servido na cozinha do hotel mesmo, sem pompa e circunstância, porque, pudera, é só o que me faltava, nós no meio da guerra (ainda estávamos em guerra?) e um pelotão de vinte e sete marmanjos quererem ser servidos em louça cara e no salão de jantar, ah, não, isso é que não tinha cabimento, até porque haja trabalho, levar toda aquela comida, mais a louça, mais as toalhas, mais os guardanapos, tudo isso pro salão e comer lá e toca aquela galera de novo, levar toda a louça suja, mais todas as toalhas sujas, mais todos os restos de comida, tudo aquilo pra cozinha, todo o trabalho pra lavar tudo e botar pra secar, Ah, não!, disse o Oliveira, Eu que não vou fazer isso; todo mundo trata de comer na cozinha e cada um lava sua louça, e foi dito-e-feito, todo mundo, até eu e o Capitão Augusto fizemos o que o Cabo Oliveira pediu; pediu não, mandou!, mas é que o Oliveira era grande, quem é que teria coragem de enfrentá-lo, essa situação ‘tava era meio que acabando com a hierarquia do Pelotão, mas também, tanto fazia, porque a gente tava mesmo acampado/escondido naquele Hotel Dornelles maluco, sem empregados nem nada.
            E foi aí então, no nosso oitavo dia, que finalmente aconteceu alguma coisa de interessante lá: ouvimos um grito de mulher. Mas não era um grito comum não, era grito de desespero, grito de quem tá na guerra mesmo, coisa que a gente devia estar, porque ‘távamos lá pra isso, mas parece que a guerra já tinha se esquecido da gente e a gente se esquecido dela, e foi como se aquele grito desesperado de mulher tivesse despertado na gente a lembrança de que tudo ainda estava acontecendo e que na verdade Sta. Rita de los Pájaros não era o descanso merecido da guerra ao qual e pelo qual tanto rezamos (menos o Santana, é claro), mas era sim um covil de inimigos que matavam mulheres inocentes e destruíam suas famílias a troco de nada, porque eram maus mesmo, lógico que eu não pensava assim, sou estudado, tenho curso superior e tudo o mais, sei que guerra é jogo de interesses políticos, mas não havia o que fazer agora, eu já estava dentro dela e motivado a matar tudo quanto fosse inimigo no campo de batalha, até que a gente ouviu aquele grito de mulher – reforço essa coisa de ser grito de mulher porque isso faz toda a diferença na guerra, porque a gente nunca escuta mulher na guerra, uma vez ou outra de enfermeira em algum acampamento de médicos, mas não é coisa comum, é coisa rara, ainda mais agora, que a gente ‘tava tudo em silêncio, todo mundo tinha se acostumado com a voz dos outros vinte e seis, ninguém esperava, mesmo num hotel hospitaleiro como fora o Hotel Dornelles, ninguém esperava ouvir ali grito de mulher, que fazia a gente lembrar de mãe e de namorada e tinha até o Sargento Pereira, que tinha filha pequena, e nessas horas esses gritos tomam forma concreta, viram gente de verdade, e aparecem na nossa frente como se fosse nossa própria esposa ou noiva dando Oi, só que um OI gritado, que o grito desesperado era de mulher, mas, fundamentalmente, era um grito – e aquele grito de mulher fez todo mundo se sobressaltar de repente e todo mundo ‘tava num instante na porta do hotel, lá no térreo,todo mundo de frente ao painel de madeira, aquele em que estava escrito escrito Bienvenidos al Hotel Dornelles!, todo mundo a postos no saguão, todos com os rifles em punho, esperando apenas a ordem do Capitão, que ainda estava se aprontando, porque não tinha pego, mesmo com tanto tempo no campo de batalha, o Capitão ainda não tinha pego o costume de estar sempre pronto pra só pegar o rifle e partir para o combate, era um paspalho mesmo, tenho certeza de que minha opinião batia bem com a do Coronel, lá no Quartel-General, que devia pensar a mesma coisa do coitado do Capitão Augusto, ‘tava tão apavorado quanto qualquer um ali, mas isso não foi problema, porque ele desceu rapidinho, também se preocupou com grito de mulher que era coisa que há muito não se ouvia.
            Fomos todos lá pra fora de supetão, porque Lógico, temos uma dama a salvar, disse o Capitão, mas ninguém deu muita bola, a gente só queria saber onde ‘tava a moça que tinha dado aquele grito afinal; aí que sobreveio e sobrevoou a nossa surpresa: uma gralha, trepada no alto de uma árvore soltou novamente o grito de mulher. E novamente. E novamente. O que aconteceu na tropa foi um misto de alívio e aflição, bem típico de quando uma situação estranha vem substituir uma situação ruim. A gralha retornou para sua árvore, de lá foi a outra, daquela foi a uma terceira, e continuou seu trajeto como se não tivesse visto o Pelotão de vinte e sete homens armados sair de uma só vez pela porta de um hotel naquela simpática cidadezinha misteriosa (eu pessoalmente tenho certeza de que a gralha nos viu e de que ela estava apenas disfarçando quando percebeu o grandioso contingente que a ameaçava com seus rifles apontados em todas as direções; tenho certeza até de que aquele grito de mulher-gralha foi de propósito, foi para nos confundir; até arrisco o palpite de que a gralha é treinada como espiã do inimigo). Passado o susto primeiro e sendo ele substituído por aquela situação de desconforto, fomos um a um entrando no Hotel Dornelles de novo, meio envergonhados de terem (termos) feito tanto alvoroço em cima de uma gralha que estava apenas cuidando de seus próprios negócios, Por que ela tinha feito esse grito?, eu me perguntava, Por que tinha que ter sido bem um grito desses, um grito de mulher, bem pronunciado e bem claro? Tenho certeza de que fez aquilo para nos perturbar, para nos botar medo, para nos fazer questionar a bênção de Sta. Rita de los Pájaros.
            Na ronda, naquela noite, fingi que não vi o Capitão se escorar na cadeira para tirar um cochilo e aproveitei para entrar nos quartos e vigiar o sono dos meus colegas, de meus subordinados da Cia., de meus compatriotas nessa terra estrangeira tão estranha, me foi de grande surpresa o que vi, pois no quarto dividido por Vicente e Fernandes (apelidado de enfermaria nos primeiros dias) estavam os dois deitados, ambos de barriga para cima, suando como dois atletas em competição esportiva, mas eu pensei comigo Mas é claro que deve ser a febre voltando, porque os dois não tomaram antibióticos o suficiente, deve ter voltado a infecção na perna de um e no abdome do outro, mas me surpreendi ainda mais quando os toquei e vi que ambos tinham temperatura normal, não estavam com febre, e os dois também sussurravam, cada um o nome de uma moça diferente, um clamava por Aurora e outro por Fernanda, me soou bizarro, afinal delírios na guerra são normais, mas já estávamos bem alimentados há oito dias, não havia fome, sede ou sono para que eles delirassem assim, mas bem, qual o problema?, não é mesmo, que dois jovens sonham com suas namoradas, ao que fui verificar os outros quartos e, como num filme barato de terror, estavam exatamente iguais aos primeiros, agora o cozinheiro gordo, Cabo Oliveira, ao lado do armeiro, Sargento Vinicius (um “Fabiana, Fabiana...”, o outro “Lúcia, Lúcia...”), o que, agora sim, acabava de me dar um susto dos diabos, porque uma coisa era os dois enfermos do Pelotão num delírio de febre (mas não era febre), mas agora são quatro?, assim já é demais! e fui ver os outros quartos, apenas para confirmar minha horrível e fantasmagórica pressuposição de que todos estavam chamando pelos nomes de suas namoradas, mulheres, noivas, prostitutas ou qual fosse a mulher de suas vidas. Muito assustado, tentei acordar o soldado do primeiro quarto, bem o cearense piadista, Do Carmo, que clamava vigorosamente por sua Juliana, e não ousou despertar de seu sonho, assim como nenhum dos outros que eu tentei acordar, nem mesmo o Capitão, que sussurrava um amável “Carlos, Carlos...” ao qual não dei atenção e desci assustado as escadarias do Hotel Dornelles, para me encontrar com o ronda, o misterioso ronda, postado displicentemente ao lado da bancada da recepção, tentando dar polimento em sua placa de metal do fardamento, alheio a minha aflição, mas aflito ele por não conseguir tirar a ferrugem que cobria todo o “Sant” no início da tarjeta; tentei me explicar, mas ele calmamente me interrompeu com as seguintes palavras Eles já nos encontraram, Tenente, só o que podemos fazer agora é fugir e deixar os outros nos delírios; Mas como podemos fugir, Santana, os homens estão delirando e. mas parei a frase assim que ouvi ao longe o som das hélices, o indistinguível som das hélices dos bombardeiros inimigos vindo claramente em nossa direção – Santana já havia retirado as malas prontas para a recepção, de modo que eu pude pegar a minha e nós dois saímos rapidamente do hotel, deixando para trás todo o 43º Pelotão de Infantaria, e era óbvio que o certo seria esperar pelos homens, mas temos instinto e eu e Santana corremos o máximo que pudemos pra dentro da floresta da qual havíamos saído, mas ainda tivemos tempo de vê-los, de ver os bombardeiros do inimigo, quase completamente camuflados contra o céu azul-escuro que apontava na noite; pudemos ver os bombardeiros do inimigo despontando no céu silencioso e até então pacífico e despejando majestosamente suas bombas sobre tudo que a cidade podia ter sido, mesmo em outras épocas, pois era um esquadrão aéreo inteiro, não eram poucos aviões e eles detonaram com a cidade e com o Hotel Dornelles, como todo o 43º Pelotão dentro – menos dois integrantes – e detonaram o poço no meio da praça e detonaram as ruas com aspecto de filme mexicano e detonaram as lojas com toldos de lona e todos os vasos de barro e detonaram todos os meus colegas e detonaram a pobre Santa Rita de los Pájaros.
            Escreverei, agora que estou a salvo no Quartel-General, o meu relatório da linha de combate. Quando me apresentei ao Coronel e falei meu número de Pelotão, ele me perguntou Então mataram aquele paspalho do Augusto, foi?

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Mens sana aut corpore sano



            Eu fora, até então, praticamente autossuficiente dentro do meu pensamento. Não havia problema de matemática, dúvida de português, diálogo filosófico, discurso retórico ou abstração conceitual que escapasse à minha capacidade intelectual avantajada, ao meu raciocínio. Toda e qualquer mensagem era decifrada, toda equação era solucionada, nada era páreo para o meu cérebro.
            Nos tempos de escola, já era patente. No primário, enquanto meus colegas pintavam, eu escrevia; enquanto escreviam, eu já calculava; enquanto balbuciavam poemas, eu lia sermões do Padre Vieira; enquanto aprendiam o Português, eu já estudava o Latim. No ginasial não foi diferente, e muito menos no Colégio e nas faculdades que fiz. Depois de Direito, formei-me em Medicina; depois, Farmácia; depois, Letras, Engenharia, Comércio... Durante o exercício de cada profissão, eu cursava a Faculdade seguinte. Já estou com meus quarenta anos e curso Botânica.
            Havia um porém à minha glória. Talvez toda a minha busca por sucesso viesse do meu insucesso óbvio e gritante. Eu não apenas fora zombado durante os meus anos escolares, como também na Faculdade. Da mesma forma, minha família rechaçava a minha pessoa e – vejam só! – até minha progenitura. Quando da morte precoce de meu pai, meu pequeno irmão Fausto assumiu a cabeceira da mesa, o atrevido! Receio, contudo, que não o fez por sua vontade, posto que me estima e me respeita muito, mas por pressão de mamãe e dos tios. “Como pode o Ludovico assumir a família, oras, se não assume o controle sobre si mesmo?” era o que dizia meu tio Margarido. Não à toa foi Medicina minha segunda Faculdade (Direito a primeira, pois pelo menos os negócios de papai eu assumi; Fausto nem formado era à época do velório!).
            O que conto agora não passou-se há mais de cinco ou seis meses, mas precisei de algum tempo para digerir o acontecido e regurgitá-lo em palavras. Estava trabalhando na Câmara do Comércio, como todos os dias, quando nos foi, a mim e a meus companheiros de repartição, anunciado o ingresso do novo escrivão, Marco Antonio. À primeira vista, diferentemente do anunciado, pareceu-me um paspalho, com sua casaca nova e seu chapéu velho e fora de moda, cabelos castanho-alourados incrivelmente arrumados mesmo depois de tirado o chapéu, os olhos claros, o bigode bem aparado, os ombros largos e fortes: um Apolozinho, jogado na Câmara do Comércio.
            Fiz-me de importante, porque é justamente o que alguém com meu cérebro deve ser considerado: importante. Importantemente não me levantei e esperei o visivelmente estúpido novato vir à minha mesa cumprimentar-me. E veio, o parvo. Convidou-me, depois de alguns dias, para uma ceia em sua casa, com sua mulher, e pediu-me que levasse a minha senhora, que seríamos muito bem recebidos.
            - Infelizmente, meu caro, declino metade do convite: não possuo uma senhora para chamar de minha -, disse-lhe.
            - Ora, mas então venha o Senhor – julgou-me tolamente ser o chefe da repartição (algo que, de fato, eu deveria ser) -, pois de qualquer forma será bem vindo.
            Fui. Chegando lá, ao adentrar sua bela casa, conduziu-me à sala de estar, oferecendo um magistral cabideiro de chão para eu colocar minha sobrecasaca francesa e meu chapéu, este sim na moda.
            - Desculpe-nos a simplicidade, Mestre Ludovico, mas penduramos as bengalas também nesse cabide -, disse-me o anfitrião.
            Para explicar minha recusa, voltaremos um pouco. Nos meus catorze anos, sentia-me um minotauro horrendo, hemicindido pela vida: minha mente, humana; meu corpo, animal. Aos dez, ganhei minha primeira bengala, que até então fora de meu avô. Toda a família esperava que, de onde estivesse o patriarca – Céu ou Inferno -, não visse tal objeto em minhas mãos; o velho certamente morreria mais uma vez, só que de desgosto. Quebrou-se aos meus doze, com o peso que sempre carregava sobre si espatifando-se no meio do pátio da escola, para alegria dos ginasiais presentes e meu desespero. Deram-me outra, minha por direito, com iniciais e tudo o mais. Nos catorze, como já disse, sentia-me dúbio, cindido; sentia-me a falha do Enigma da Esfinge: estava em três pernas no auge da minha mocidade. Sou, fui e serei como nasci: coxo, manco, claudicante, satírico, hefestuoso. Tenho uma perna mais curta do que a outra em meio palmo.
            Marco tornou-se um amigo próximo. Nas semanas seguintes, incentivou-me a sair a dar largos passeios depois do expediente. Minha vergonha era como um anúncio grande de jornal, estampada em minhas faces, perto daquele exemplo grego de beleza. Podia-se imaginar um deus acompanhado de seu servo sátiro, passeando pelas calçadas do centro até altas horas da noite. Não possuo e talvez ninguém o possua, mas quem possuísse um óculos que visse inteligência no lugar de beleza teria invertido o papel do meu amigo com o meu nessa pictorização clássica.
            Nossas caminhadas tornaram-se, com o tempo, mais fáceis. Marco então passou a me convidar para vê-lo em suas competições esportivas, o que de início trouxe-me uma repulsa imensa e violenta, como a de um homem que encara o sofrimento humano no Tártaro. Minhas lembranças da juventude brotaram como almas penadas a me assombrarem assim que meu amigo proferiu o convite. Vituperavam contra mim e, sarcásticos, faziam cantos elogiosos a deuses mancos, a heróis coxos, a Tibério Cláudio, imperador romano. Comprimiam-se ao meu redor envolvendo-me com suas garras que deixavam escorrer veneno puro. Uma delas sussurrou meu nome: Fracasso. Foi a gota d’água.
            - Sim, vou assisti-lo – e as bruxas evaporaram com a mesma rapidez com que surgiram.
            As lutas contra nós mesmos são as mais difíceis. Passei a frequentar, inicialmente com dor, o Ginásio no qual Marco treinava para suas competições de nado e montaria. O sucesso de Marco parecia corroer minhas entranhas; eu não podia aguentar a glória aquiliana de meu amigo. Fiquei uma semana sem falar com ele. Voltamos a nos falar com o horripilante diálogo:
            - Mestre Ludovico, eu competirei na semana que vem, num torneio de montaria. Gostaria que o senhor fosse meu treinador até lá. Vi sua cara de insatisfação durante meu treino e apenas um intelecto como o de vossa senhoria pode me ajudar nessa competição.
            Fomos após o trabalho para o estábulo do Ginásio. Marco explicou-me o que teria que fazer para vencer a competição e rapidamente calculei qual trajeto de obstáculos seria mais rápido. Treinamos (treinou) intensamente até a interrupção por um funcionário do clube.
            - Senhor Marco, Senhor Marco, está parado aí na frente um cabriolé com um condutor esbaforido que alega que sua esposa está em trabalho de parto e roga por sua presença!
            Marco nem teve tempo de despedir-se de mim ou retirar a roupa de cavaleiro. Fiquei sozinho no campo de treino da montaria, sob o sol crepuscular. Vi o cavalo amarrado desleixadamente à cerca e aí então vi outra coisa. Vi surgirem do encontro da terra com os céus um embate digno do Fim dos Tempos. De um lado lutavam meu avô e meu pai, armados de bengalas e com seus antigos trajes militares e suas antigas medalhas do tempo da guerra; do outro Marco reapareceu montado num cavalo, a flamejante bengala de meu avô novamente inteira apontada contra meus antepassados. Marco convidou-me a unir-me a ele na batalha, e eu não pensei duas vezes antes de tomar o pobre cavalo atrelado à cerca, empunhar-me minha bengala como Marco fazia e partir para o combate.
            Recobrei a consciência quando o cavalo parou, exausto, na lateral da arena, para beber água. O relógio da torre da capela do Ginásio bateu oito vezes; já fazia duas horas que meu amigo saíra para atender a suas obrigações paternas. Não havia sinal dele, nem de meu avô, nem de meu pai, nem de batalha nenhuma. Meu corpo funcionava, então? Eu andara a cavalo por duas horas, sem cair, errar, machucar o cavalo ou rirem de mim. Minha felicidade foi ímpar. Sentia-me, enfim, pleno: uma mente brilhante num corpo funcional. Nos meus catorze anos, meu desejo era ser apenas mente, aniquilar meu corpo; mas hoje não! Estava dono de mim. Principalmente, e finalmente, sentia o peso de meus ascendentes esvaindo-se, deixando minhas costas livres. Até meu andar tornou-se menos abrupto, menos manco depois desse dia.
            Escrevo hoje, depois de tudo e a essa hora da noite porque cheguei da casa de Marco agora, onde comemoramos minha colocação de terceiro lugar no Torneio de Montaria para iniciantes do Ginásio Esportivo. Mens sana in corpore sano.