Fui hoje à Pinacoteca do Estado de SP e, por acaso, topei com a mostra "Fortuna", do sul-africano William Kentridge, contando com quadros, gravuras, esculturas, filmes etc. O autor utiliza predominantemente carvão nas suas composições, aplicando, desaplicando e reaplicando seus traços uns sobre os outros. Os tons vermelho e azul por vezes quebram a monocromia, mas são raros (e no entanto fundamentais para a obra). Do corredor externo para a área interna da mostra, vemos a primeira grande mudança fundamental de duas facetas da obra do autor: do lado de fora da mostra, vídeos que o retratam, sendo ele o ator de suas obras, que exploram alguns temas; dentro da sala principal da mostra, sua estética volta-se para sua produção gráfica, com os desenhos trabalhados principalmente com o carvão sobre o papel. Algumas considerações podem ser feitas em geral: o tom político de suas obras gráficas é fortíssimo, ainda que velado e contrapõem-se fortemente às obras que o retratam, que parecem buscar uma transcendência maior, além de um clima mais leve e mais humorístico. Em relação a particularidades, discorro a seguir:
MOSTRA EXTERNA: O HOMEM QUE FICOU vs. O HOMEM QUE PARTIU
A parte externa da mostra de Kentridge conta com alguns filmes (assisti a quatro) que apostam na sua atuação e em jogos de composição de câmera para passar sua mensagem. As temáticas que se colocam como fundo das obras (pelo que eu vi, todas) são fundamentalmente duas: a aula de desenho (como visto nos vídeos "Drawing Lesson") e o tempo. Em relação às Drawing Lessons, é curioso observar que todos os vídeos, pela reiteração de elementos e pelo próprio título, parecem remeter a aulas de desenho, como se o autor estivesse querendo indicar ao espectador como fazer desenho. Curiosamente, o desenho nos vídeos só parece fazer sentido quando colocado na perspectiva do movimento que estão sofrendo. Assim sendo, parece que o autor corrobora sua frase (tirada do folder da mostra):
"Quando era mais jovem, todos me diziam que, para ser bom em algo, é preciso ser espcializado. Se eu quisesse desenhar, deveria fazer apenas isso... Levei muitos anos para desaprender isso, para aprender que a única esperança de um desenho era se ele fosse, ao mesmo tempo, um desenho e parte de um filme. O que esta exposição faz é mostrar a indeterminação dos meios."
A outra temática, do tempo, percorre seus vídeos com precisão. Um metrônomo aparece em sua obra "Anti-Mercator" e seu tiquetaquear é incessante, pontuando a distinção fiel entre tempo e falta dele. É a recusa do tempo convivendo com a temporalidade, em substância concreta. No mesmo vídeo, a distinção entre a estaticidade e o movimento se faz patente com a sobreposição de um vídeo do autor correndo e de um outro vídeo que mostra uma mão desenhando uma caixa em volta do próprio autor correndo. Se está correndo dentro da caixa parada; a visão do autor divindo um desenho de uma reta temporal em partes iguais e opinando sobre a infinita divisibilidade do tempo se sobrepõe às páginas que, em oposição, mostram o texto escrito do "homem que ficou" contra o "homem que partiu", um com frases de planos "I will" e outro com realizações. O tempo permite a concomitância dessas formas, mas não permite que paremos. Em outro vídeo, a aparição de três versões do autor, cada uma fazendo uma ação (um lendo um texto, um alternando entre a trompa e o texto, e outro tocando a trompa com a ajuda de seu abafador/desentupidor de privada), contracenando com uma máquina que canta ópera parece, novamente, colocar na perspectiva da contemporaneidade quatro momentos da produção artística humana, no que respeita a junção de música e poesia.
MOSTRA INTERNA: RUPTURA E CONTINUIDADE, DESENHO E APAGAMENTO, BRANCO E PRETO - A ÁFRICA DO SUL EM DESENHO
Na mostra interna, os tons políticos do autor transparecem com força descomunal. Seus estudos de desenho se expõe na segunda sala, mostrando quadros em preto-e-branco marcados com auxiliares de desenho em vermelho: é a vocação intrutora reverberando o espírito das Drawing Lessons, mostrando ao espectador que a obra é técnica, e guarda em seu âmago e superfície todo artifício usado pelo desenhista.
Abundam também as obras feitas sobre outras fontes - páginas de enciclopédias, de livros, de revistas e jornais - que parecem dizer bem sobre a continuidade como tema do autor: nada é novo, tudo só existe sobre uma outra fonte. Um conjunto de cartazes de protesto jocoso sobre o portal da sala, escritos em vermelho sobre páginas de antigos livros reforça a imagem visual, lhe colocando ainda a força de pedir mudança usando como base o antigo.
Nas próximas salas da exposição, um conjunto de gravuras que foram usadas para a base dos filmes que o artista produziu de 1989 até 2012 são o chamativo, mas o importante está nas salas de projeção, onde estão expostos os curta-metragens que deixaram famoso o artista. A maioria deles baseia-se na constante ruptura que há entre os tons de preto e branco na obra: parecem constituir-se como a alma do artista. Não por acaso, porque Kentridge viveu na África do Sul desde seu nascimento, em 1955, vivendo, portanto, o período de apartheid que tanto opôs (como sua obra) negros e brancos. O impressionante movimento de seus filmes dá-se com o surpreendente efeito de se desenhar (com carvão) e apagar a figura para fazê-la mover-se, deixando, nesse processo, a marca do que havia sido desenhado antes: é a concretização visual da continuidade das ações, da inexistência da ruptura em si. O que é preto agora no segundo seguinte será branco, mas o processo ocorreu e deixa marcas de si pelo caminho.
Em "Other Faces", a violência inerente a essa oposição é fundamental para o movimento da obra: a batida de carro, observada de uma perspectiva superior e depois no nível do solo, mostra um negro e um branco gritando um contra o outro, com o ponto alto da frase escrita "You fucken white man", se opondo à constante imagem do fotógrafo que tira fotos apenas dos negros, sendo, ele mesmo, branco.
Em "Weighing... and Wanting", a possível perda da mulher para uma doença surge com a imagem precisa do corte: uma massa disforme é cortada por linhas vermelhas que sobressaem aos olhos do espectador, revelando, com a metáfora da tomografia, a ruptura inerente à morte de um ente querido. As chagas da esposa que são substituídas pelas vigas de aço das torres de energia constituem imagem forte também. As imagens da esposa sendo apagadas e substituídas por objetos - em especial seus favoritos: o telefone, o mataborrão e a máquina de escrever - nos prende à perspectiva de não sobrar resquício do que passou, mesmo que esse resquício seja um traço de carvão mal apagado.
Já em "Stereoscope", a linha de telefones aparece concretizada em traços azuis que, atravessando a cidade, vão ligando e cortando as cenas urbanas, juntando cidadãos e criando uma barreira de si para si mesmo, colocado o autor como personagem. Ao final, apenas uma explosão pode tratar de aniquilar aquele único que não se conecta com o mundo todo.
domingo, 29 de setembro de 2013
quinta-feira, 2 de maio de 2013
Incomunicável
Vou produzir uma obra
a mais magnífica obra
que ninguém vai entender
Fundirei no mais puro bronze
um grande, altivo Belerofonte
mas ninguém vai entender
Pintarei magníficas telas
cantarei as canções mais belas
apesar de ninguém entender
Tentarei toda sorte de gênero
do baixo ao alto, além do ameno
pena que ninguém vai entender
Cansado, com fome, aflito
lançarei mão de um único grito
"Alguém vai entender?"
No final, acabará o problema
eu farei meu próprio poema
para ninguém mais entender.
a mais magnífica obra
que ninguém vai entender
Fundirei no mais puro bronze
um grande, altivo Belerofonte
mas ninguém vai entender
Pintarei magníficas telas
cantarei as canções mais belas
apesar de ninguém entender
Tentarei toda sorte de gênero
do baixo ao alto, além do ameno
pena que ninguém vai entender
Cansado, com fome, aflito
lançarei mão de um único grito
"Alguém vai entender?"
No final, acabará o problema
eu farei meu próprio poema
para ninguém mais entender.
terça-feira, 30 de abril de 2013
Câmbio
fiquei pensando hoje o dia todo o quanto eu não consigo me comunicar com a maioria das pessoas
e falar o que eu sinto e penso com clareza
e ser entendido
sei lá
me senti um estrangeiro
perdido contra a turba
as palavras me magoam
porque estão reverberando na minnha cabeça
e me trazem a tona tudo que eu já cometi de erro
logo eu que quero cometê-los poucosquarta-feira, 23 de janeiro de 2013
O Ronco dos Pássaros
Eram muitos tiros sobre nossas
cabeças, assim como muitos aviões. Os tiros intermináveis, os avios
esporádicos... Todo dia era fome, sede e sono, todo dia a mesma fome, a mesma
sede e o mesmo sono, cada dia piores, dizíamos que era a mesma mais para nos reconfortarmos
do que por serem mesmo a mesma fome, o mesmo sono, a mesma sede; a verdade é
que não eram, cada dia eram piores, tanto a fome, quanto a sede, quanto o sono,
nenhum dos três nunca cessavam, só aumentavam e aumentavam e aumentavam e os
dias eram mais longos e as noites de ronda, mais curtas (quando estávamos na ronda, eram mais longas). As noites
tornavam-se mais frias com o passar do tempo, O inverno ta chegando, dizia o
Marco, que fazia a contagem dos dias para nós, porque era o único que tinha
vindo com caderno e ele havia numerado, ah, o Marco era esperto mesmo, desde a
época de escola, a gente estudou junto, o Marco havia numerado as páginas do
caderninho que ele trouxe, no começo todo mundo achou Que babaquice, esse nerd
na guerra só vai atrapalhar o Pelotão; mas o Marco não, podia ser nerd, mas ele
sabia pensar direito, e agora já todo mundo agradecia que ele tinha trazido o
(Bendito caderninho, hein, Marco!) bendito caderninho dele, que meio que deixava
todo mundo são, era uma espécie de ligação nossa com a realidade, que tinha
ficado lá em casa; aquela realidade do dia a dia, de chegar em casa do trabalho
e encontrar a mãe e a irmã, essa realidade de verdade, das coisas que
acontecem; não da guerra, essa não acontece de verdade verdadeira, acontece só
em filme de Hollywood, com ator famoso, ganhador do Oscar; mas a nossa
realidade virou aquela de filme, em que tem mocinho e o sargento malvado e as
latrinas pra limpar (mas isso só no treinamento, ainda bem) e os pentes de bala
e Toma aqui esse fuzil, seu verme! E toca a gente com lama até o joelho
atravessando a floresta, que agora já tava frio, de acordo com o Marco já é 25
de maio já, meu aniversário mesmo passou e eu nem vi, porque ainda não tinha juntado
o Pelotão – o Marco era da XXVII Cia. e eu era da XXVIII, sou médico de formação,
né, e essa Cia. tava sem – e sem o Marco nem o Capitão Augusto sabia da data e
isso porque ele tinha um relógio todo incrementado, era de família rica o
Capitão, isso dava pra ver, era daqueles que o pai tinha sido Coronel e o avô
também, porque ele mesmo não tinha nada que prestava pra guerra que a gente
tava enfrentando, talvez se fosse uma guerra da carteira dele contra a roupa
cara da loja ele talvez ganhasse, mas nem assim, porque era no fundo um
filhinho de papai, caiu nessa porque era bonito e acabou se lascando, até pior
que eu, porque eu pelo menos não tinha que mandar em ninguém, meu negócio era
só curar quem tivesse com um tiro na coxa ou algo do tipo (eu digo curar, mas
na verdade era embebedar o homem de cachaça barata mesmo e torcer pra ele não
acordar enquanto eu tivesse arrancando a bala, mais do que isso não era da
minha alçada não). E eu acho que até o Capitão percebia essa minha vantagem
sobre ele, porque ficava me olhando com uma cara estranha de vez em quando, se
eu dava uma ordem prum soldado me pegar uma gaze, me olhava; se era uma
recomendação pro sargento que foi baleado, me olhava; acho mesmo é que o
Capitão gostava de olhar pras pessoas porque, a bem da verdade, só me olhava
estranho, o riquinho (como a gente chamava ele, era de Coronel Riquinho, porque
a gente dizia que ele era tão afetado que devia ganhar soldo de Coronel pra
manter toda aquela pose).
E já era pra lá de meia-noite, Ou
seja, já é dia vinte e sete, disse o Marco, quando a gente chegou naquela
cidade, que puxa vida!, que cidade estranha, pois que estava no meio da linha
de combate e não estava a) destruída nem b) povoada pelo inimigo. Era a coisa
mais estranha do mundo aquela loucura de cidade que não tinha ninguém mas tinha
cara de que tinha tido, mas não tinha cara de que tinha sido invadida, mas
tinha cara de que Se fosse pra ser invadida, já tinha sido, disse o Capitão num
arroubo de liderança, porque normalmente ele nem falava nada, nem coisas óbvias
como essa. E a cidade ‘tava lá, meio distante? da gente, sei lá, porque era
como se nunca tivesse sido tocada, mas como que uma cidade nunca tocada teria
sido construída, né?, Isso pra mim parece é sonho, disse o Do Carmo com aquele
sotaque cearense e todo mundo deu risada e eu vi nos olhos de todo mundo – e
teria visto no meu porque estava sem espelho, mas se tivesse com um, eu tinha
visto também – um olhar de quem acabava de ver o Mágico de Oz e sorrir
ternamente com os sapatinhos de rubi no Kansas, um olhar de quem descobre uma
realidade meio que posta no lugar errado, posta fora de si, como quando a gente
vê alguém muito calmo explodir de raiva, ou alguém muito bravo sendo carinhoso
com a namorada; sei que no fundo todo mundo tinha visto um sonho e acreditado
nele e de repente não acreditava mais, mas tava com vergonha de ter acreditado,
que nem aquela última criança da sala que descobre que Papai Noel não existe;
tudo isso nos primeiros milésimos, milionésimos de segundo em que todos riram da
frase do Do Carmo, mas aí todo mundo olhou de novo e viu que o sonho não tinha
desaparecido e que ‘tava lá, não nossa frente a cidade que, pela cara, devia
ser uma cidade pequena, mas também não tão pequena assim, porque a gente não
conseguia ver o final dela de cima do morro, era ali como fosse uma serra, e a
cidade ficava no meio do vale, mas escorregava pra dentro de um outro vale,
parecendo até um pouco que ela corria junto com o rio que ficava no meio dela e
que, de onde a gente ‘tava, dava pra ver que dava apoio, nas margens, pra
várias pontezinhas, uma a cada duzentos, trezentos metros, não dava pra ter
certeza, a gente ‘tava meio longinho mesmo, acho que uns três, quatro
quilômetros, coisa assim, o Marco fica querendo dar uma de espertão, fica
falando que São três vírgula setenta e cinco quilômetros, Capitão, mas a gente
fala que deve ser uns três e fica por isso mesmo, só quem gosta dessas frescuras
do Marco é o afetado do Capitão, Coronel Riquinho, haha, mas sei que é isso
mesmo, no nosso passo a gente vai levar uma hora, por aí, que a gente ‘tá num
passo de marcha muito lento, porque tem dois aqui, o Vicente e o Fernandes,
‘tão baleados e andam mais devagar, isso é normal, faz parte desse nosso sonho
do absurdo, essa guerra, essa guernica; já dizia um amigo meu que Se você vai
ao Teatro do Absurdo, só pode esperar ver o Absurdo, o que nunca fora tanta
verdade pra mim quanto é hoje. Hoje, dia 27/05, estou com o 43º Pelotão de
Infantaria, vinte e sete bravos homens, uns feridos, outros doentes, alguns
somente cansados, todos com medo da cidade que se estende aos nossos pés,
misteriosa e silenciosa. Misteriosa e silenciosa até demais.
Adentramos o portal da cidade,
Bienvenidos a la ciudad de Sta. Rita de los Pájaros, dizia a placa de entrada,
É Santa Rita dos Pássaros, só que em espanhol, nos disse o Capitão, muito
desnecessariamente, porque nem o Oliveira, que só tinha até a quarta série, não
saberia que essa era a tradução do que estava escrito na placa de azulejos
brancos na entrada da cidade; era bom que pelo menos sabíamos onde estávamos,
era Sta. Rita de los Pájaros, se alguém perguntasse Onde está o Pelotão,
Capitão? (isso se o rádio voltasse a funcionar) pelo menos o coitado do Coronel
Riquinho podia dizer com certeza ao superior dele Estamos, com absoluta
certeza, em Sta. Rita de los Pájaros, Major!, o que lhe daria pelo menos um
pouco mais de credibilidade junto ao Major, que julgava (muito corretamente)
que o Capitão não passava de um paspalho, mas o que haveria de se fazer?, ele era
Capitão, deveria comandar um Pelotão, naturalmente. Naturalmente, também, não
possuía culhão para tal, mas isso pouco importava, teria de servir, pois só
havia ele mesmo; do Quartel-General, tenho certeza, estariam falando agora da
pena que foi perder aquele Pelotão no meio da selva, estava agora incomunicável,
Mas é claro, com aquele comandante palerma, lógico que se perderiam, diria o
Coronel ao saber da notícia; mas isso se eles tivessem mesmo se perdido e nós
não nos perdemos, sei eu bem, porque estamos, obviamente, em Sta. Rita de los
Pájaros, que bendita santa era essa, eu não sabia dizer, mas que os mais
católicos já estavam rezando em seu nome, ah, isso já estavam mesmo, certos
eles, que rezam por todos nós, melhor que o Santana, que fica ali, quieto no
canto, metido a ateu, que sei lá o quê, é comunista, coisa assim e é por isso
que nem acredita em Deus e nem reza pra santa nenhuma, quanto mais essa que
ninguém conhece – mas a gente mais simples reza mesmo assim, vai que dá certo,
né?!.
O negócio é que lá estávamos, na
bendita Sta. Rita, padroeira dos soldados perdidos (se não fosse, acabava de
virar), e fomos logo entrando na cidade, chamando por moradores, mas como saber se haveria
inimigos nos esconderijos, nos becos da misteriosa santa, naquelas ruelas todas
que mais pareciam tiradas de um cartum do ligeirinho, parecia que estávamos no
México, mas num México no meio da mata fechada, sei que havia aquelas lojinhas
com toldos de lona amarelada, uns vasos de barro ali do outro lado, um poço no
meio da praça, bem aquele cenariozinho que a gente vê em filme mesmo, só
faltava aparecer o caubói americano, o Charles Bronson, alguém assim, pra ver
se ia rolar um duelo em praça pública, mas não, não veio Charles nenhum, nem
bola de feno passando atrás do cenário não tinha nessa cidade esquisita. Oxente
que isso aqui tá mais é parecendo minha cidade quando fomo pro Sul, falou bem
alto o Do Carmo, que fez todo mundo rir alto, todo mundo querendo mesmo uma
desculpa pra poder não ficar tenso e o Do Carmo arranjou bem essa, fez até o
Santana rir, mesmo ele que nunca achava nada bacana nem engraçado, mas nessa
ele não aguentou e riu mesmo. Nessa hora foi que eu dei por mim uma coisa
estranha, que parece que ninguém tinha reparado, foi que os barulhos de tiro,
antes tão frequentes, tinham sumido, a floresta escondeu os tiros da gente,
escondeu os tiros e os aviões, nenhum mais passava na nossa cabeça, fazendo a
gente se jogar no primeiro buraco que visse, que nem tatu apavorado quando
sente cheiro de onça; mas nem isso não tinha mais, barulho de tiro, tanque,
avião, nada disso a gente tava ouvindo, foi aí que eu chamei o Capitão no canto
e falei Capitão, o senhor deve ter reparado que não tá mais passando avião e
nem tem mais barulho de tiro, o que o senhor acha que tá acontecendo?, o que eu
acho que foi informação demais pro coitado do Coronel Riquinho, que deu uma
bela duma travada e ficou bem uns cinquenta segundos pensando no que fazer em
relação a isso e depois dos cinquenta segundos ele me disse Tenente, você sabe
que os homens tão precisando é de apoio, mas não vamos falar nada, que não é
bom a gente ficar criando esperança, quem for percebendo vai percebendo e pronto,
tá., e eu Sim, senhor, Capitão e continuamos a nossa procura por algum sinal de
vida naquela cidade meio estranha que a gente tinha chegado.
Umas duas horas já tinham passado
quando a gente chegou no que parecia um hotel, uma pousada, coisa to tipo,
paramos e entramos e estava tudo como um hotel normal em dia de serviço, só que
sem ninguém, sem viv’alma que pudesse dar informação ou pelo menos alugar um
quarto pra eles, que eles estavam mortos de fome e de cansaço. Vasculhando o
hotel – Hotel Dornelles, estava escrito atrás da bancada da recepção, entalhado
na madeira, junto daqueles nichos onde ficam as chaves quando os hóspedes não
estão, os nichos cheios de chaves, porque, visivelmente, não havia nenhum hóspede
naquele hotel e em nenhum outro da cidade – certificaram-se de que não havia
ninguém e não havia mesmo ninguém no Hotel Dornelles.
Tendo analisado cada pedaço de
Hotel, os homens ficaram bem mais tranquilos, mesmo eu fiquei mais tranquilo,
mesmo eu que sou desconfiado até de abraço de mãe, eu fiquei mais calmo com a
solidão do Hotel Dornelles, só quem não ficou foi o Santana, voltou à mesma
carranca de antes da piada do Do Carmo, aquele Santana era um esquisito mesmo e
não fosse ser tão na dele e tão obediente o Capitão teria até medo dele, eu sei
disso e sei bem, porque até eu teria medo do Santana – sujeitinho mais
estranho, viu?!, ninguém nem sabia de onde tinha vindo; porque no começo a
gente acaba apelidando o sujeito é pelo Estado dele, o Do Carmo era o Cearense,
o Vicente era o Carioca, eu mesmo os meninos chamavam de Tenente Paulista (eu
nem ligava, deixava eles chamarem , que assim ficava todo mundo mais unido).
Mas o Santana não, ninguém nem falava com ele, quanto mais saber de onde ele
era – e, no fundo, todo mundo tinha era uma certa expectativa... Sei é que na
solidão do Hotel Dornelles cada dois escolheram um quarto pra dividir – fiquei
com o Coronel Riquinho, porque só tinha nós dois de oficial, e sabe como ele é,
né, basta uma chance que ele ‘tá reclamando sua patente pra cá e pra lá –
porque assim um protegia o outro se acontecesse alguma coisa e dividimos (eu
dividi, o Capitão ficou do meu lado fazendo, tentando fazer cara de mau) todos
nos quartos e cada quarto ia fazer só um pouquinho de ronda, né, dois quartos
por vez, um aqui em cima, outro lá no térreo, assim ficava certinho; ficaram no
fim catorze quartos mesmo, porque o Santana insistiu de dormir sozinho, mesmo
com o Capitão mandando fazer um trio, mas ele sabia que o Capitão tinha medo
dele, então foi e pegou o último quarto sozinho mesmo e falou que ia fazer a
ronda sozinho também, que não tinha problema, ele dava conta, e Bom, eu é que
não questiono o hômi, disse o Do Carmo assim que o Santana foi pro quarto dele
e todo mundo caiu na gargalhada de novo.
Todo mundo já estava colocado, muito
bem instalado no próprio quarto e o Vicente e o Fernandes a gente pôs pra ficar
nas janelas do último andar, meio de guarda, porque não podiam ajudar de outro
jeito, então ficaram de sentinelas nos quartos da frente do hotel, a gente até
arranjou uns antibióticos lá e eu dei pra eles, pra ver se pelo menos baixava a
febre dos dois; o Oliveira foi pra cozinha e Deixe comigo que eu faço a comida,
porque lá no Paraná eu trabalhava em restaurante, ele disse, então tudo bem,
Você vai pra cozinha, Oliveira, onde ele achou um monte de comida na despensa,
que ia dar bem pra gente ficar uma semana ou mais um pouco e Quando acabar a
gente vai e pega nas casas, não tem ninguém mesmo!, o que foi uma notícia boa
pra caramba, deu uma boa animada no pessoal, que já ‘tava cansado de ter que
ficar comendo banana na floresta e economizando ração-de-campanha – ração essa
que o Oliveira repôs a de todo mundo – e bebendo água barrenta de orquídea na
selva.
As rondas iam noite afora, sempre
dois homens no térreo, dois no andar de cima, o dos quartos, eu e o Capitão
fazíamos nas primeiras horas da noite, porque daí nosso sono era contínuo, Regalia
de oficial, sabe como é, né, Tenente?, dizia pra mim o Capitão, durante a nossa
ronda e eu nem me importava, era pouco tempo pra cada um; desde que todos
tivessem o mesmo horário, estranho ainda era o Santana, ia sozinho pra ronda e
ainda ficava lá no térreo, mas quem ia ter culhão pra desafiá-lo com aquele
jeito estranho de quem ‘tá meio escondendo alguma cosia, tramando algum
plano... Era um cara estranho mesmo, disso eu sei.
Passaram três dias e já era dia trinta
e um de maios, um frio de rachar, mas o aquecimento do Hotel Dornelles era o
bastante pra manter todos quentes e , não tinha jeito, tínhamos que usar o aquecedor
mesmo; devia estar lá pelos doze, treze graus, Treze mas com sensação térmica
de onze vírgula cinco, disse o Marco, Ah, Marco, quem quer saber dessas suas
bobagens?, replicou o Oliveira durante o almoço, que era servido na cozinha do
hotel mesmo, sem pompa e circunstância, porque, pudera, é só o que me faltava,
nós no meio da guerra (ainda estávamos em guerra?) e um pelotão de vinte e sete
marmanjos quererem ser servidos em louça cara e no salão de jantar, ah, não,
isso é que não tinha cabimento, até porque haja trabalho, levar toda aquela
comida, mais a louça, mais as toalhas, mais os guardanapos, tudo isso pro salão
e comer lá e toca aquela galera de novo, levar toda a louça suja, mais todas as
toalhas sujas, mais todos os restos de comida, tudo aquilo pra cozinha, todo o
trabalho pra lavar tudo e botar pra secar, Ah, não!, disse o Oliveira, Eu que
não vou fazer isso; todo mundo trata de comer na cozinha e cada um lava sua
louça, e foi dito-e-feito, todo mundo, até eu e o Capitão Augusto fizemos o que
o Cabo Oliveira pediu; pediu não, mandou!, mas é que o Oliveira era grande,
quem é que teria coragem de enfrentá-lo, essa situação ‘tava era meio que
acabando com a hierarquia do Pelotão, mas também, tanto fazia, porque a gente
tava mesmo acampado/escondido naquele Hotel Dornelles maluco, sem empregados
nem nada.
E foi aí então, no nosso oitavo dia,
que finalmente aconteceu alguma coisa de interessante lá: ouvimos um grito de
mulher. Mas não era um grito comum não, era grito de desespero, grito de quem
tá na guerra mesmo, coisa que a gente devia estar, porque ‘távamos lá pra isso,
mas parece que a guerra já tinha se esquecido da gente e a gente se esquecido
dela, e foi como se aquele grito desesperado de mulher tivesse despertado na
gente a lembrança de que tudo ainda estava acontecendo e que na verdade Sta.
Rita de los Pájaros não era o descanso merecido da guerra ao qual e pelo qual
tanto rezamos (menos o Santana, é claro), mas era sim um covil de inimigos que
matavam mulheres inocentes e destruíam suas famílias a troco de nada, porque
eram maus mesmo, lógico que eu não pensava assim, sou estudado, tenho curso
superior e tudo o mais, sei que guerra é jogo de interesses políticos, mas não
havia o que fazer agora, eu já estava dentro dela e motivado a matar tudo
quanto fosse inimigo no campo de batalha, até que a gente ouviu aquele grito de
mulher – reforço essa coisa de ser grito de mulher porque isso faz toda a diferença
na guerra, porque a gente nunca escuta mulher na guerra, uma vez ou outra de
enfermeira em algum acampamento de médicos, mas não é coisa comum, é coisa
rara, ainda mais agora, que a gente ‘tava tudo em silêncio, todo mundo tinha se
acostumado com a voz dos outros vinte e seis, ninguém esperava, mesmo num hotel
hospitaleiro como fora o Hotel Dornelles, ninguém esperava ouvir ali grito de
mulher, que fazia a gente lembrar de mãe e de namorada e tinha até o Sargento
Pereira, que tinha filha pequena, e nessas horas esses gritos tomam forma
concreta, viram gente de verdade, e aparecem na nossa frente como se fosse
nossa própria esposa ou noiva dando Oi, só que um OI gritado, que o grito desesperado
era de mulher, mas, fundamentalmente, era um grito – e aquele grito de mulher
fez todo mundo se sobressaltar de repente e todo mundo ‘tava num instante na
porta do hotel, lá no térreo,todo mundo de frente ao painel de madeira, aquele
em que estava escrito escrito Bienvenidos al Hotel Dornelles!, todo mundo a
postos no saguão, todos com os rifles em punho, esperando apenas a ordem do
Capitão, que ainda estava se aprontando, porque não tinha pego, mesmo com tanto
tempo no campo de batalha, o Capitão ainda não tinha pego o costume de estar
sempre pronto pra só pegar o rifle e partir para o combate, era um paspalho
mesmo, tenho certeza de que minha opinião batia bem com a do Coronel, lá no
Quartel-General, que devia pensar a mesma coisa do coitado do Capitão Augusto,
‘tava tão apavorado quanto qualquer um ali, mas isso não foi problema, porque
ele desceu rapidinho, também se preocupou com grito de mulher que era coisa que
há muito não se ouvia.
Fomos todos lá pra fora de supetão,
porque Lógico, temos uma dama a salvar, disse o Capitão, mas ninguém deu muita
bola, a gente só queria saber onde ‘tava a moça que tinha dado aquele grito
afinal; aí que sobreveio e sobrevoou a nossa surpresa: uma gralha, trepada no
alto de uma árvore soltou novamente o grito de mulher. E novamente. E
novamente. O que aconteceu na tropa foi um misto de alívio e aflição, bem
típico de quando uma situação estranha vem substituir uma situação ruim. A
gralha retornou para sua árvore, de lá foi a outra, daquela foi a uma terceira,
e continuou seu trajeto como se não tivesse visto o Pelotão de vinte e sete
homens armados sair de uma só vez pela porta de um hotel naquela simpática
cidadezinha misteriosa (eu pessoalmente tenho certeza de que a gralha nos viu e
de que ela estava apenas disfarçando quando percebeu o grandioso contingente
que a ameaçava com seus rifles apontados em todas as direções; tenho certeza
até de que aquele grito de mulher-gralha foi de propósito, foi para nos
confundir; até arrisco o palpite de que a gralha é treinada como espiã do
inimigo). Passado o susto primeiro e sendo ele substituído por aquela situação
de desconforto, fomos um a um entrando no Hotel Dornelles de novo, meio envergonhados
de terem (termos) feito tanto alvoroço em cima de uma gralha que estava apenas
cuidando de seus próprios negócios, Por que ela tinha feito esse grito?, eu me
perguntava, Por que tinha que ter sido bem um grito desses, um grito de mulher,
bem pronunciado e bem claro? Tenho certeza de que fez aquilo para nos
perturbar, para nos botar medo, para nos fazer questionar a bênção de Sta. Rita
de los Pájaros.
Na ronda, naquela noite, fingi que
não vi o Capitão se escorar na cadeira para tirar um cochilo e aproveitei para
entrar nos quartos e vigiar o sono dos meus colegas, de meus subordinados da
Cia., de meus compatriotas nessa terra estrangeira tão estranha, me foi de
grande surpresa o que vi, pois no quarto dividido por Vicente e Fernandes
(apelidado de enfermaria nos primeiros dias) estavam os dois deitados, ambos de
barriga para cima, suando como dois atletas em competição esportiva, mas eu
pensei comigo Mas é claro que deve ser a febre voltando, porque os dois não
tomaram antibióticos o suficiente, deve ter voltado a infecção na perna de um e
no abdome do outro, mas me surpreendi ainda mais quando os toquei e vi que ambos
tinham temperatura normal, não estavam com febre, e os dois também sussurravam,
cada um o nome de uma moça diferente, um clamava por Aurora e outro por
Fernanda, me soou bizarro, afinal delírios na guerra são normais, mas já
estávamos bem alimentados há oito dias, não havia fome, sede ou sono para que
eles delirassem assim, mas bem, qual o problema?, não é mesmo, que dois jovens
sonham com suas namoradas, ao que fui verificar os outros quartos e, como num
filme barato de terror, estavam exatamente iguais aos primeiros, agora o
cozinheiro gordo, Cabo Oliveira, ao lado do armeiro, Sargento Vinicius (um
“Fabiana, Fabiana...”, o outro “Lúcia, Lúcia...”), o que, agora sim, acabava de
me dar um susto dos diabos, porque uma coisa era os dois enfermos do Pelotão
num delírio de febre (mas não era febre), mas agora são quatro?, assim já é
demais! e fui ver os outros quartos, apenas para confirmar minha horrível e
fantasmagórica pressuposição de que todos estavam chamando pelos nomes de suas
namoradas, mulheres, noivas, prostitutas ou qual fosse a mulher de suas vidas.
Muito assustado, tentei acordar o soldado do primeiro quarto, bem o cearense
piadista, Do Carmo, que clamava vigorosamente por sua Juliana, e não ousou
despertar de seu sonho, assim como nenhum dos outros que eu tentei acordar, nem
mesmo o Capitão, que sussurrava um amável “Carlos, Carlos...” ao qual não dei
atenção e desci assustado as escadarias do Hotel Dornelles, para me encontrar
com o ronda, o misterioso ronda, postado displicentemente ao lado da bancada da
recepção, tentando dar polimento em sua placa de metal do fardamento, alheio a
minha aflição, mas aflito ele por não conseguir tirar a ferrugem que cobria
todo o “Sant” no início da tarjeta; tentei me explicar, mas ele calmamente me
interrompeu com as seguintes palavras Eles já nos encontraram, Tenente, só o
que podemos fazer agora é fugir e deixar os outros nos delírios; Mas como
podemos fugir, Santana, os homens estão delirando e. mas parei a frase assim
que ouvi ao longe o som das hélices, o indistinguível som das hélices dos
bombardeiros inimigos vindo claramente em nossa direção – Santana já havia
retirado as malas prontas para a recepção, de modo que eu pude pegar a minha e
nós dois saímos rapidamente do hotel, deixando para trás todo o 43º Pelotão de
Infantaria, e era óbvio que o certo seria esperar pelos homens, mas temos
instinto e eu e Santana corremos o máximo que pudemos pra dentro da floresta da
qual havíamos saído, mas ainda tivemos tempo de vê-los, de ver os bombardeiros
do inimigo, quase completamente camuflados contra o céu azul-escuro que
apontava na noite; pudemos ver os bombardeiros do inimigo despontando no céu
silencioso e até então pacífico e despejando majestosamente suas bombas sobre
tudo que a cidade podia ter sido, mesmo em outras épocas, pois era um esquadrão
aéreo inteiro, não eram poucos aviões e eles detonaram com a cidade e com o
Hotel Dornelles, como todo o 43º Pelotão dentro – menos dois integrantes – e
detonaram o poço no meio da praça e detonaram as ruas com aspecto de filme
mexicano e detonaram as lojas com toldos de lona e todos os vasos de barro e
detonaram todos os meus colegas e detonaram a pobre Santa Rita de los Pájaros.
Escreverei, agora que estou a salvo
no Quartel-General, o meu relatório da linha de combate. Quando me apresentei
ao Coronel e falei meu número de Pelotão, ele me perguntou Então mataram aquele
paspalho do Augusto, foi?
quarta-feira, 16 de janeiro de 2013
Mens sana aut corpore sano
Eu fora, até então, praticamente
autossuficiente dentro do meu pensamento. Não havia problema de matemática,
dúvida de português, diálogo filosófico, discurso retórico ou abstração
conceitual que escapasse à minha capacidade intelectual avantajada, ao meu
raciocínio. Toda e qualquer mensagem era decifrada, toda equação era
solucionada, nada era páreo para o meu cérebro.
Nos tempos de escola, já era
patente. No primário, enquanto meus colegas pintavam, eu escrevia; enquanto
escreviam, eu já calculava; enquanto balbuciavam poemas, eu lia sermões do
Padre Vieira; enquanto aprendiam o Português, eu já estudava o Latim. No
ginasial não foi diferente, e muito menos no Colégio e nas faculdades que fiz.
Depois de Direito, formei-me em Medicina; depois, Farmácia; depois, Letras,
Engenharia, Comércio... Durante o exercício de cada profissão, eu cursava a
Faculdade seguinte. Já estou com meus quarenta anos e curso Botânica.
Havia um porém à minha glória.
Talvez toda a minha busca por sucesso viesse do meu insucesso óbvio e gritante.
Eu não apenas fora zombado durante os meus anos escolares, como também na
Faculdade. Da mesma forma, minha família rechaçava a minha pessoa e – vejam só!
– até minha progenitura. Quando da morte precoce de meu pai, meu pequeno irmão
Fausto assumiu a cabeceira da mesa, o atrevido! Receio, contudo, que não o fez
por sua vontade, posto que me estima e me respeita muito, mas por pressão de
mamãe e dos tios. “Como pode o Ludovico assumir a família, oras, se não assume
o controle sobre si mesmo?” era o que dizia meu tio Margarido. Não à toa foi
Medicina minha segunda Faculdade (Direito a primeira, pois pelo menos os
negócios de papai eu assumi; Fausto nem formado era à época do velório!).
O que conto agora não passou-se há
mais de cinco ou seis meses, mas precisei de algum tempo para digerir o acontecido
e regurgitá-lo em palavras. Estava trabalhando na Câmara do Comércio, como
todos os dias, quando nos foi, a mim e a meus companheiros de repartição,
anunciado o ingresso do novo escrivão, Marco Antonio. À primeira vista,
diferentemente do anunciado, pareceu-me um paspalho, com sua casaca nova e seu
chapéu velho e fora de moda, cabelos castanho-alourados incrivelmente arrumados
mesmo depois de tirado o chapéu, os olhos claros, o bigode bem aparado, os
ombros largos e fortes: um Apolozinho, jogado na Câmara do Comércio.
Fiz-me de importante, porque é
justamente o que alguém com meu cérebro deve ser considerado: importante.
Importantemente não me levantei e esperei o visivelmente estúpido novato vir à
minha mesa cumprimentar-me. E veio, o parvo. Convidou-me, depois de alguns
dias, para uma ceia em sua casa, com sua mulher, e pediu-me que levasse a minha
senhora, que seríamos muito bem recebidos.
- Infelizmente, meu caro, declino
metade do convite: não possuo uma senhora para chamar de minha -, disse-lhe.
- Ora, mas então venha o Senhor –
julgou-me tolamente ser o chefe da repartição (algo que, de fato, eu deveria
ser) -, pois de qualquer forma será bem vindo.
Fui. Chegando lá, ao adentrar sua
bela casa, conduziu-me à sala de estar, oferecendo um magistral cabideiro de
chão para eu colocar minha sobrecasaca francesa e meu chapéu, este sim na moda.
- Desculpe-nos a simplicidade,
Mestre Ludovico, mas penduramos as bengalas também nesse cabide -, disse-me o
anfitrião.
Para explicar minha recusa, voltaremos
um pouco. Nos meus catorze anos, sentia-me um minotauro horrendo, hemicindido
pela vida: minha mente, humana; meu corpo, animal. Aos dez, ganhei minha
primeira bengala, que até então fora de meu avô. Toda a família esperava que,
de onde estivesse o patriarca – Céu ou Inferno -, não visse tal objeto em
minhas mãos; o velho certamente morreria mais uma vez, só que de desgosto.
Quebrou-se aos meus doze, com o peso que sempre carregava sobre si
espatifando-se no meio do pátio da escola, para alegria dos ginasiais presentes
e meu desespero. Deram-me outra, minha por direito, com iniciais e tudo o mais.
Nos catorze, como já disse, sentia-me dúbio, cindido; sentia-me a falha do
Enigma da Esfinge: estava em três pernas no auge da minha mocidade. Sou, fui e
serei como nasci: coxo, manco, claudicante, satírico, hefestuoso. Tenho uma
perna mais curta do que a outra em meio palmo.
Marco tornou-se um amigo próximo.
Nas semanas seguintes, incentivou-me a sair a dar largos passeios depois do
expediente. Minha vergonha era como um anúncio grande de jornal, estampada em
minhas faces, perto daquele exemplo grego de beleza. Podia-se imaginar um deus
acompanhado de seu servo sátiro, passeando pelas calçadas do centro até altas
horas da noite. Não possuo e talvez ninguém o possua, mas quem possuísse um
óculos que visse inteligência no lugar de beleza teria invertido o papel do meu
amigo com o meu nessa pictorização clássica.
Nossas caminhadas tornaram-se, com o
tempo, mais fáceis. Marco então passou a me convidar para vê-lo em suas
competições esportivas, o que de início trouxe-me uma repulsa imensa e
violenta, como a de um homem que encara o sofrimento humano no Tártaro. Minhas
lembranças da juventude brotaram como almas penadas a me assombrarem assim que
meu amigo proferiu o convite. Vituperavam contra mim e, sarcásticos, faziam
cantos elogiosos a deuses mancos, a heróis coxos, a Tibério Cláudio, imperador
romano. Comprimiam-se ao meu redor envolvendo-me com suas garras que deixavam
escorrer veneno puro. Uma delas sussurrou meu nome: Fracasso. Foi a gota
d’água.
- Sim, vou assisti-lo – e as bruxas
evaporaram com a mesma rapidez com que surgiram.
As lutas contra nós mesmos são as
mais difíceis. Passei a frequentar, inicialmente com dor, o Ginásio no qual
Marco treinava para suas competições de nado e montaria. O sucesso de Marco
parecia corroer minhas entranhas; eu não podia aguentar a glória aquiliana de
meu amigo. Fiquei uma semana sem falar com ele. Voltamos a nos falar com o
horripilante diálogo:
- Mestre Ludovico, eu competirei na
semana que vem, num torneio de montaria. Gostaria que o senhor fosse meu
treinador até lá. Vi sua cara de insatisfação durante meu treino e apenas um
intelecto como o de vossa senhoria pode me ajudar nessa competição.
Fomos após o trabalho para o
estábulo do Ginásio. Marco explicou-me o que teria que fazer para vencer a
competição e rapidamente calculei qual trajeto de obstáculos seria mais rápido.
Treinamos (treinou) intensamente até a interrupção por um funcionário do clube.
- Senhor Marco, Senhor Marco, está
parado aí na frente um cabriolé com um condutor esbaforido que alega que sua
esposa está em trabalho de parto e roga por sua presença!
Marco nem teve tempo de despedir-se
de mim ou retirar a roupa de cavaleiro. Fiquei sozinho no campo de treino da
montaria, sob o sol crepuscular. Vi o cavalo amarrado desleixadamente à cerca e
aí então vi outra coisa. Vi surgirem do encontro da terra com os céus um embate
digno do Fim dos Tempos. De um lado lutavam meu avô e meu pai, armados de
bengalas e com seus antigos trajes militares e suas antigas medalhas do tempo
da guerra; do outro Marco reapareceu montado num cavalo, a flamejante bengala
de meu avô novamente inteira apontada contra meus antepassados. Marco
convidou-me a unir-me a ele na batalha, e eu não pensei duas vezes antes de
tomar o pobre cavalo atrelado à cerca, empunhar-me minha bengala como Marco
fazia e partir para o combate.
Recobrei a consciência quando o
cavalo parou, exausto, na lateral da arena, para beber água. O relógio da torre
da capela do Ginásio bateu oito vezes; já fazia duas horas que meu amigo saíra
para atender a suas obrigações paternas. Não havia sinal dele, nem de meu avô,
nem de meu pai, nem de batalha nenhuma. Meu corpo funcionava, então? Eu andara
a cavalo por duas horas, sem cair, errar, machucar o cavalo ou rirem de mim.
Minha felicidade foi ímpar. Sentia-me, enfim, pleno: uma mente brilhante num
corpo funcional. Nos meus catorze anos, meu desejo era ser apenas mente,
aniquilar meu corpo; mas hoje não! Estava dono de mim. Principalmente, e
finalmente, sentia o peso de meus ascendentes esvaindo-se, deixando minhas
costas livres. Até meu andar tornou-se menos abrupto, menos manco depois desse
dia.
Escrevo hoje, depois de tudo e a
essa hora da noite porque cheguei da casa de Marco agora, onde comemoramos
minha colocação de terceiro lugar no Torneio de Montaria para iniciantes do
Ginásio Esportivo. Mens sana in corpore
sano.
Assinar:
Postagens (Atom)