quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Mens sana aut corpore sano



            Eu fora, até então, praticamente autossuficiente dentro do meu pensamento. Não havia problema de matemática, dúvida de português, diálogo filosófico, discurso retórico ou abstração conceitual que escapasse à minha capacidade intelectual avantajada, ao meu raciocínio. Toda e qualquer mensagem era decifrada, toda equação era solucionada, nada era páreo para o meu cérebro.
            Nos tempos de escola, já era patente. No primário, enquanto meus colegas pintavam, eu escrevia; enquanto escreviam, eu já calculava; enquanto balbuciavam poemas, eu lia sermões do Padre Vieira; enquanto aprendiam o Português, eu já estudava o Latim. No ginasial não foi diferente, e muito menos no Colégio e nas faculdades que fiz. Depois de Direito, formei-me em Medicina; depois, Farmácia; depois, Letras, Engenharia, Comércio... Durante o exercício de cada profissão, eu cursava a Faculdade seguinte. Já estou com meus quarenta anos e curso Botânica.
            Havia um porém à minha glória. Talvez toda a minha busca por sucesso viesse do meu insucesso óbvio e gritante. Eu não apenas fora zombado durante os meus anos escolares, como também na Faculdade. Da mesma forma, minha família rechaçava a minha pessoa e – vejam só! – até minha progenitura. Quando da morte precoce de meu pai, meu pequeno irmão Fausto assumiu a cabeceira da mesa, o atrevido! Receio, contudo, que não o fez por sua vontade, posto que me estima e me respeita muito, mas por pressão de mamãe e dos tios. “Como pode o Ludovico assumir a família, oras, se não assume o controle sobre si mesmo?” era o que dizia meu tio Margarido. Não à toa foi Medicina minha segunda Faculdade (Direito a primeira, pois pelo menos os negócios de papai eu assumi; Fausto nem formado era à época do velório!).
            O que conto agora não passou-se há mais de cinco ou seis meses, mas precisei de algum tempo para digerir o acontecido e regurgitá-lo em palavras. Estava trabalhando na Câmara do Comércio, como todos os dias, quando nos foi, a mim e a meus companheiros de repartição, anunciado o ingresso do novo escrivão, Marco Antonio. À primeira vista, diferentemente do anunciado, pareceu-me um paspalho, com sua casaca nova e seu chapéu velho e fora de moda, cabelos castanho-alourados incrivelmente arrumados mesmo depois de tirado o chapéu, os olhos claros, o bigode bem aparado, os ombros largos e fortes: um Apolozinho, jogado na Câmara do Comércio.
            Fiz-me de importante, porque é justamente o que alguém com meu cérebro deve ser considerado: importante. Importantemente não me levantei e esperei o visivelmente estúpido novato vir à minha mesa cumprimentar-me. E veio, o parvo. Convidou-me, depois de alguns dias, para uma ceia em sua casa, com sua mulher, e pediu-me que levasse a minha senhora, que seríamos muito bem recebidos.
            - Infelizmente, meu caro, declino metade do convite: não possuo uma senhora para chamar de minha -, disse-lhe.
            - Ora, mas então venha o Senhor – julgou-me tolamente ser o chefe da repartição (algo que, de fato, eu deveria ser) -, pois de qualquer forma será bem vindo.
            Fui. Chegando lá, ao adentrar sua bela casa, conduziu-me à sala de estar, oferecendo um magistral cabideiro de chão para eu colocar minha sobrecasaca francesa e meu chapéu, este sim na moda.
            - Desculpe-nos a simplicidade, Mestre Ludovico, mas penduramos as bengalas também nesse cabide -, disse-me o anfitrião.
            Para explicar minha recusa, voltaremos um pouco. Nos meus catorze anos, sentia-me um minotauro horrendo, hemicindido pela vida: minha mente, humana; meu corpo, animal. Aos dez, ganhei minha primeira bengala, que até então fora de meu avô. Toda a família esperava que, de onde estivesse o patriarca – Céu ou Inferno -, não visse tal objeto em minhas mãos; o velho certamente morreria mais uma vez, só que de desgosto. Quebrou-se aos meus doze, com o peso que sempre carregava sobre si espatifando-se no meio do pátio da escola, para alegria dos ginasiais presentes e meu desespero. Deram-me outra, minha por direito, com iniciais e tudo o mais. Nos catorze, como já disse, sentia-me dúbio, cindido; sentia-me a falha do Enigma da Esfinge: estava em três pernas no auge da minha mocidade. Sou, fui e serei como nasci: coxo, manco, claudicante, satírico, hefestuoso. Tenho uma perna mais curta do que a outra em meio palmo.
            Marco tornou-se um amigo próximo. Nas semanas seguintes, incentivou-me a sair a dar largos passeios depois do expediente. Minha vergonha era como um anúncio grande de jornal, estampada em minhas faces, perto daquele exemplo grego de beleza. Podia-se imaginar um deus acompanhado de seu servo sátiro, passeando pelas calçadas do centro até altas horas da noite. Não possuo e talvez ninguém o possua, mas quem possuísse um óculos que visse inteligência no lugar de beleza teria invertido o papel do meu amigo com o meu nessa pictorização clássica.
            Nossas caminhadas tornaram-se, com o tempo, mais fáceis. Marco então passou a me convidar para vê-lo em suas competições esportivas, o que de início trouxe-me uma repulsa imensa e violenta, como a de um homem que encara o sofrimento humano no Tártaro. Minhas lembranças da juventude brotaram como almas penadas a me assombrarem assim que meu amigo proferiu o convite. Vituperavam contra mim e, sarcásticos, faziam cantos elogiosos a deuses mancos, a heróis coxos, a Tibério Cláudio, imperador romano. Comprimiam-se ao meu redor envolvendo-me com suas garras que deixavam escorrer veneno puro. Uma delas sussurrou meu nome: Fracasso. Foi a gota d’água.
            - Sim, vou assisti-lo – e as bruxas evaporaram com a mesma rapidez com que surgiram.
            As lutas contra nós mesmos são as mais difíceis. Passei a frequentar, inicialmente com dor, o Ginásio no qual Marco treinava para suas competições de nado e montaria. O sucesso de Marco parecia corroer minhas entranhas; eu não podia aguentar a glória aquiliana de meu amigo. Fiquei uma semana sem falar com ele. Voltamos a nos falar com o horripilante diálogo:
            - Mestre Ludovico, eu competirei na semana que vem, num torneio de montaria. Gostaria que o senhor fosse meu treinador até lá. Vi sua cara de insatisfação durante meu treino e apenas um intelecto como o de vossa senhoria pode me ajudar nessa competição.
            Fomos após o trabalho para o estábulo do Ginásio. Marco explicou-me o que teria que fazer para vencer a competição e rapidamente calculei qual trajeto de obstáculos seria mais rápido. Treinamos (treinou) intensamente até a interrupção por um funcionário do clube.
            - Senhor Marco, Senhor Marco, está parado aí na frente um cabriolé com um condutor esbaforido que alega que sua esposa está em trabalho de parto e roga por sua presença!
            Marco nem teve tempo de despedir-se de mim ou retirar a roupa de cavaleiro. Fiquei sozinho no campo de treino da montaria, sob o sol crepuscular. Vi o cavalo amarrado desleixadamente à cerca e aí então vi outra coisa. Vi surgirem do encontro da terra com os céus um embate digno do Fim dos Tempos. De um lado lutavam meu avô e meu pai, armados de bengalas e com seus antigos trajes militares e suas antigas medalhas do tempo da guerra; do outro Marco reapareceu montado num cavalo, a flamejante bengala de meu avô novamente inteira apontada contra meus antepassados. Marco convidou-me a unir-me a ele na batalha, e eu não pensei duas vezes antes de tomar o pobre cavalo atrelado à cerca, empunhar-me minha bengala como Marco fazia e partir para o combate.
            Recobrei a consciência quando o cavalo parou, exausto, na lateral da arena, para beber água. O relógio da torre da capela do Ginásio bateu oito vezes; já fazia duas horas que meu amigo saíra para atender a suas obrigações paternas. Não havia sinal dele, nem de meu avô, nem de meu pai, nem de batalha nenhuma. Meu corpo funcionava, então? Eu andara a cavalo por duas horas, sem cair, errar, machucar o cavalo ou rirem de mim. Minha felicidade foi ímpar. Sentia-me, enfim, pleno: uma mente brilhante num corpo funcional. Nos meus catorze anos, meu desejo era ser apenas mente, aniquilar meu corpo; mas hoje não! Estava dono de mim. Principalmente, e finalmente, sentia o peso de meus ascendentes esvaindo-se, deixando minhas costas livres. Até meu andar tornou-se menos abrupto, menos manco depois desse dia.
            Escrevo hoje, depois de tudo e a essa hora da noite porque cheguei da casa de Marco agora, onde comemoramos minha colocação de terceiro lugar no Torneio de Montaria para iniciantes do Ginásio Esportivo. Mens sana in corpore sano.

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