segunda-feira, 21 de junho de 2010

"Se eu pudesse dizer
O que nunca te direi,
Tu terias que entender
Aquilo que nem eu sei"

Fernando Pessoa

domingo, 20 de junho de 2010

Maldito sentimento

"Maldito é este sentimento:
Você não fica em meus braços,
mas não me sai do pensamento."

...ou coroa

"É curioso o fato de eu pensar assim
a gente sempre viveu meio junto
se vendo o tempo todo e nada acontecia
lógico... tem essas diferenças
mas se ele pelo menos olhasse pra mim dessa forma
o curioso é que ele sempre fica por perto quando ele tá por aqui
será que ele... não, deve ser só minha imaginação
não teria cabimento
mas se ele insinuasse alguma coisa
seria tão bom..."

sábado, 12 de junho de 2010

Um a mais, um a menos

Carlos não conseguia ter bichos de estimação. Todos morriam. Sua mãe, D. Lúcia, consciente disso, só comprava bichos pequenos, para que os enterrinhos fossem menos custosos. Ela não ligava muito para os bichinhos, na verdade. Mas Carlos ligava. Roubava facas e afiadores de seu pai, açougueiro, e as transformava em verdadeiros bisturis. Ele gostava mesmo era de vê-los com pânico no olhar, amarrados com fita isolante a um banco de pedra no terreno balido ao lado, enquanto observava os coraçõezinhos dos hamsters e passarinhos dando as últimas batidas depois das incisões cirúrgicas feitas pelo garoto.
João, do bairro ao lado, não saía nunca do quarto. Fazia suas refeições lá, mergulhado em livros rigorosamente limpos e bem-cuidados. Seu quarto lembrava mais uma livraria do que uma biblioteca. Quem entrasse naquele quarto se perguntaria se alguém algum dia lera aquelas enciclopédias, biografias, livros didáticos. Histórias, poemas, romances? Não. Seus quase três mil livros não continham nenhum suspiro de amor, nenhuma lágrima, nenhum abraço. As informações são superiores, dizia o garoto.
Alex, da rua de baixo, mudou várias vezes de escola. As garotas o deduravam às diretoras quando as levantadas de saia, os apertões na bunda e as exibições genitais espontâneas passavam do limite do aceitável. As suas coleções de revistas, vídeos e outros materiais pornográficos invejavam boa parte dos seus amigos e colegas de classe. Aos treze, já havia frequentado muitos dos bordéis da região.
O Colégio Estadual nunca recebera grupo tão estranho. Um dos garotos vinha duma escola normal do bairro e, dizia-se, não era muito afeito a animais. O outro, mais esquisito que o primeiro, ia pela primeira vez à escola: havia sido educado em casa até o fim do 1º grau. O terceiro, um pervertido, havia sido "convidado a se retirar" de mais de quinze escolas durante a vida toda. A diretora pouco se preocupou. Mal-comportados tinham de bando no Colégio. Um a mais, um a menos, dizia a D. Marta, diretora havia 22 anos.
Do outro lado da cidade, três meses depois, coitada, a Srta. Vanessa Rodrgiues da Silva, 23, entrou para as estatísticas de maneira assustadora: estuprada, com a cabeça aberta, o coração arrancado e surpreendentemente limpa. A Polícia declarou o caso fechado depois de seis meses de inconclusivas investigações. Os pais da moça ficaram arrasados. Um a mais, uma menos, dizia D. Marta.

Uma outra noite qualquer

Eu entrei naquela noite, de novo. Devia parar de visitar o "clube", como eles (e elas) chamavam. Meu chapéu-coco demonstrava a diferença do meu status: não possuía dinheiro, não possuía cartola. Minha camisa amarelada e meu casaco sujo não combinavam com o vermelho-dourado-e-brilho do lugar, o que fazia com que eu passasse despercebido pelos olhos empapuçados e bigodes sujos dos industriais. Dos camarotes saiam brados embriagados e risadas altas, falsas, femininas, pagas, contribuindo para o tom alegre de desapego e excitação que pairava entre as fumaças de charuto e os goles de bebida.
Ela estava no palco, a cinta-liga dourada refletindo o brilho dos lustres de cristal. Parecia intocável, inabalável; impossível de existir, até. Impossível de existir por natureza própria: ela existia para os outros, para o prazer dos outros. Sua impossibilidade de existiria ao encontro da minha impossibilidade de tê-la. Eu não podia nem me embebedar naquele lugar. A bebida era cara e meu aluguel já estava atrasado. Atrasado.
Eu estava atrasado na vida dela.. Se eu a tivesse conhecido antes desse mundo, quem sabe o que poderia ter acontecido. Talvez eu passado batido por ela. Talvez eu tenha me apaixonado pela impossibilidade, afinal, se o seu objetivo é impossível, você não precisa tentar, não vai tentar, não consegue tentar.
Saí do "clube" com a chuva negra de Paris sobre meus ombros cansados. Olhei as ricas carruagens que passavam. Olhei minha vida que passava. Voltaria outras noites, outras infinitas noites de admiração e tristeza.