De certa forma, sinto-me impelido a
escrever algo sobre Estética, em especial após ter tido contato com alguns
pensamentos de Theodor Adorno. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, houve esse
apelo de alguns setores da crítica literária (e artística, de uma forma mais
abrangente) para a tematização do extermínio propiciado pelo III Reich, sob o
comando do famigerado “Führer”, Adolf Hitler. Judeu que era, Adorno era um dos
que julgava de grande necessidade a abordagem do Holocausto (ou “Shoah”/“השואה” em iídiche, como preferem os
judeus) nas variadas formas artísticas, em especial na literatura. Chegou a
afirmar que qualquer poema alemão “após Auschwitz” seria um ato de barbárie[1].
Começou com isso o problema da oposição em retratar ou não a barbárie.
A instituição do que é “Barbárie” já
é em si problemática. Podemos observar claramente que o extermínio judeu na
Alemanha nos anos de 1930/40 pouco difere qualitativamente dos cometidos por
espanhóis e portugueses contra os habitantes nativos da América; igualmente em
relação às Caças às Bruxas e da Inquisição, perpetradas pela Igreja Católica; o
mesmo se dá sobre as intervenções estadunidenses e israelenses no Oriente Médio
após 1967. Por que então apenas em relação ao primeiro fato faz-se a
problematização da “Estética do Mal”? O argumento, a meu ver, mais propagado é
o da desumanização do povo judeu durante a “solução final” nazista. O mesmo não
ocorreu nas demais situações? A proximidade dos afetados com o ocorrido, cronologicamente
falando, também é argumento. Mas também eu, que tenho um oitavo de sangue
sírio, não tenho direito ao resguardo internacional pelo sofrimento do meu
povo? Quais são os critérios para estabelecermos os limites do que é e do que
não é “Barbárie”?
Na minha opinião, um ponto em que
devemos nos concentrar nessa discussão é o do anacronismo. Quando analisamos um
fato, ele já é passado, uma vez que a perfeita concomitância entre ação e discursivização
dessa é claramente um limite da linguagem humana. Assim sendo, toda análise vem
a ser, sob essa ótica, um anacronismo. Certo julgamento, de arrogância ou
prepotência, pode recair sobre minha cabeça agora, mas arrisco: acho que há,
num sentido não-positivista da questão, uma certa evolução em alguns aspectos da
cultura dos povos[2].
Que houve certa involução, não nego, mas houve aspectos em que tivemos
crescimento e melhorias na qualidade de vida dos humanos. Coloco-me em
consonância com o sociólogo Amartya Sem, que afirma que uma sociedade tem tanto
progresso quanto for a liberdade humana em seu interior. Particularmente, acho
que vivo no momento em que mais há liberdade humana, pelo menos se fizermos uma
retrospectiva dos últimos mil anos. Assumo que não há um ideal universal de
como devem viver as pessoas; acho, porém, que temos uma essência que busca pela
liberdade, um polo da natureza dentro da consciência de casa um, o que me
permite, com certas ressalvas, elencar a liberdade como uma das necessidades
humanas básicas e, portanto, a contemporaneidade como uma das épocas mais
desenvolvidas nesse quesito. Temo ser dogmático e alienado, mas acho que, na
análise do que é ou não é “Barbárie”, podemos sim utilizar alguns valores
contemporâneos, sempre com parcimônia. O problema do anacronismo não
desaparece, obviamente, mas pelo menos dentro de um mesmo Zeitgeist, teremos os mesmos valores para embasar nossos
julgamentos históricos. Mas por que, voltando à questão judaica, dentro da
análise embasada nos mesmos valores (de respeito à vida e de tolerância) o caso
judeu difere dos casos ameríndio e árabe?
A “Barbárie” está nos olhos do
contexto, como podemos verificar através do dado temporal. Mas o que haveria de
explicar a condenação e subsequente problematização do extermínio judeu em
oposição a outros é uma questão de poder. Um clichê da historiografia (em
especial aquela calcada em uma herança positivista) é que “a história é escrita
pelos vencedores”. No caso, parece-me que o clichê se confirma. Não houve uma
elite internacional vinculada aos índios que pusesse seu extermínio como
“barbárie”, a ponto de haver o questionamento referente à necessidade e à
possibilidade de retratá-lo na arte; da mesma forma, as forças de resistência
árabes são tidas como terroristas e os judeus e estadunidenses, ainda do lado
das elites, como heróis da democracia no Oriente Médio. A “Barbárie” não é,
portanto, uma violação dos valores humanos básicos; é antes, uma violação dos
valores humanos básicos quando direcionada EXCLUSIVAMENTE aos donos do poder, à
elite.
A “Estética da Barbárie”, nesse
sentido, é mais do que a representação de violações aos humanos. Constitui-se
como posição ideológica, colocação no jogo sócio-político numa disputa de poderes
opostos. É um perigo, pois reafirma a posição superior da elite. Os espanhóis,
vistos sob a ótica do século XVI, estavam civilizando os primitivos e
desalmados nativos da América; sob a nossa ótica, massacrando um povo e
colocando sua cultura na direção da extinção. Parcial, tendenciosa e indisposta
a ver os dois lados do processo histórico (e sua dialética inerente e
incontestável, porque é parte do passado), a “Estética da Barbárie”
institucionaliza a visão historiográfica positivista na matéria que, a meu ver,
deveria ser a mais livre de influências estranguladoras, que é a Arte. Está
longe de mim o desejo de não representar as violações à humanidade: acho que é
constituinte próprio do ser humano a dialética entre felicidade e sofrimento,
que produz arte dos interstícios entre esses dois polos. A “Estética da
Barbárie” representa apenas metade do sofrimento humano, apenas a metade
vencedora, e exatamente nesse ponto é perniciosa. Exemplifico: tal Estética, no
contexto médio-oriental, preza por descrever, representar e apresentar o quanto
sofrem os israelenses por causa dos ataques de seus vizinhos palestinos; não dá
conta, entretanto, do fato de que os israelenses possuem Forças Armadas
extremamente bem treinadas ou que sua nação é essencialmente beligerante (há
alistamento obrigatório inclusive para as mulheres), em oposição à resistência
palestina, desarticulada justamente porque há uma oposição na ONU, da parte dos
EUA e de Israel, à criação de um Estado Palestino. A cruel “Estética da
Barbárie” exalta os sofredores que vencem, independentemente de estarem agindo
corretamente ou não. Aos que perdem, nem uma vírgula na história; talvez sejam
lembrados por terem sido os vilões subjugados pelos mocinhos heróicos.
Dessa maneira, a “Estética da
Barbárie” encaixa-se muito bem na cultura de bases judaico-cristãs, com a
exaltação do herói (ou seja, do vencedor) que passa por privações para alcançar
seu objetivo. Esse sacrifício aumenta o merecimento do herói e o coloca num
posto de elevação espiritual. O aspecto aí apontado baseia-se também noutra
questão: o merecimento leva ao sucesso, doutrina baseada, suponho eu, nas
promessas divinas para o post mortem.
Esse heroísmo judaico-cristão dos sacrifícios justifica em boa medida a
“Estética da Barbárie”, baseando-a na ideia de que se há um vencedor, esse só
pode estar do lado correto, do lado do bem, uma vez que Deus não beneficiaria
um pecador, alguém agindo a favor das forças malignas. Na Queda do Homem vemos
que o pecador é condenado; no Êxodo, que o crente é recompensado. Não podemos
escapar desse destino histórico-sócio-ideológico sem antes nos propormos a
quebrar nossos laços com essa tradição, em nome do bem-estar humano. Sem esse
rompimento, estaremos fadados a repetirmos as análises históricas positivistas,
as injustiças das elites, a exaltação do opressor e os lugares-comuns análogos
na história do ser humano.
Apesar disso, acho que há como
escapar e reverter essa situação. Os processos históricos não devem ser vistos
no após e nem no antes; devem ser vistos no durante. A verdadeira “Barbárie”
não existe. Existe, sim, a luta constante entre opressor e oprimido e essa deve
ser contada, mas verificada na presentificação das ações: em 1940, na Alemanha,
o III Reich era o opressor e a comunidade judaica (e outros grupos sociais), o
oprimido; em 2012, no Oriente Médio, a comunidade judaica é o opressor e a
comunidade palestina, o oprimido. A história da humanidade é a história da
relação opressor-oprimido. O opressor é o sujeito histórico a ser condenado,
independentemente de vencer ou não na luta histórica. Inauguro, talvez, a
Estética da Anti-Opressão: não quero a exaltação da condição do oprimido, mas
sim o encorajamento da resistência, das insurgências, dos levantes populares. A
Estética da Anti-Opressão teria um único objetivo, o de incentivar a luta
contra as forças subordinadoras, contra o subjugo de forças sobre pessoas,
contra a imposição de valores. Exaltemos não a inversão do jogo de poderes,
porque a comunidade judaica passou de oprimida a opressora, mas exaltemos a
anulação das forças de opressão, a neutralização dos jogos de poder humanos. Só
assim, talvez, a Estética elevar-se-á.
[1] „Nach Auschwitz ein Gedicht zu
schreiben, ist barbarisch“. ADORNO, Theodor. Kulturkritik und Gesellschaft.
[2] Reforço que não tenho
inspirações positivistas, nem compromisso com as teorias de que “o homem mais
civilizado é o mais evoluído”. Acho apenas que algumas coisas melhoraram no
decorrer da história humana e a isso chamo “evolução”.
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