segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Ensaio sobre a Estética da Barbárie


            De certa forma, sinto-me impelido a escrever algo sobre Estética, em especial após ter tido contato com alguns pensamentos de Theodor Adorno. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, houve esse apelo de alguns setores da crítica literária (e artística, de uma forma mais abrangente) para a tematização do extermínio propiciado pelo III Reich, sob o comando do famigerado “Führer”, Adolf Hitler. Judeu que era, Adorno era um dos que julgava de grande necessidade a abordagem do Holocausto (ou “Shoah”/“השואה” em iídiche, como preferem os judeus) nas variadas formas artísticas, em especial na literatura. Chegou a afirmar que qualquer poema alemão “após Auschwitz” seria um ato de barbárie[1]. Começou com isso o problema da oposição em retratar ou não a barbárie.
            A instituição do que é “Barbárie” já é em si problemática. Podemos observar claramente que o extermínio judeu na Alemanha nos anos de 1930/40 pouco difere qualitativamente dos cometidos por espanhóis e portugueses contra os habitantes nativos da América; igualmente em relação às Caças às Bruxas e da Inquisição, perpetradas pela Igreja Católica; o mesmo se dá sobre as intervenções estadunidenses e israelenses no Oriente Médio após 1967. Por que então apenas em relação ao primeiro fato faz-se a problematização da “Estética do Mal”? O argumento, a meu ver, mais propagado é o da desumanização do povo judeu durante a “solução final” nazista. O mesmo não ocorreu nas demais situações? A proximidade dos afetados com o ocorrido, cronologicamente falando, também é argumento. Mas também eu, que tenho um oitavo de sangue sírio, não tenho direito ao resguardo internacional pelo sofrimento do meu povo? Quais são os critérios para estabelecermos os limites do que é e do que não é “Barbárie”?
            Na minha opinião, um ponto em que devemos nos concentrar nessa discussão é o do anacronismo. Quando analisamos um fato, ele já é passado, uma vez que a perfeita concomitância entre ação e discursivização dessa é claramente um limite da linguagem humana. Assim sendo, toda análise vem a ser, sob essa ótica, um anacronismo. Certo julgamento, de arrogância ou prepotência, pode recair sobre minha cabeça agora, mas arrisco: acho que há, num sentido não-positivista da questão, uma certa evolução em alguns aspectos da cultura dos povos[2]. Que houve certa involução, não nego, mas houve aspectos em que tivemos crescimento e melhorias na qualidade de vida dos humanos. Coloco-me em consonância com o sociólogo Amartya Sem, que afirma que uma sociedade tem tanto progresso quanto for a liberdade humana em seu interior. Particularmente, acho que vivo no momento em que mais há liberdade humana, pelo menos se fizermos uma retrospectiva dos últimos mil anos. Assumo que não há um ideal universal de como devem viver as pessoas; acho, porém, que temos uma essência que busca pela liberdade, um polo da natureza dentro da consciência de casa um, o que me permite, com certas ressalvas, elencar a liberdade como uma das necessidades humanas básicas e, portanto, a contemporaneidade como uma das épocas mais desenvolvidas nesse quesito. Temo ser dogmático e alienado, mas acho que, na análise do que é ou não é “Barbárie”, podemos sim utilizar alguns valores contemporâneos, sempre com parcimônia. O problema do anacronismo não desaparece, obviamente, mas pelo menos dentro de um mesmo Zeitgeist, teremos os mesmos valores para embasar nossos julgamentos históricos. Mas por que, voltando à questão judaica, dentro da análise embasada nos mesmos valores (de respeito à vida e de tolerância) o caso judeu difere dos casos ameríndio e árabe?
            A “Barbárie” está nos olhos do contexto, como podemos verificar através do dado temporal. Mas o que haveria de explicar a condenação e subsequente problematização do extermínio judeu em oposição a outros é uma questão de poder. Um clichê da historiografia (em especial aquela calcada em uma herança positivista) é que “a história é escrita pelos vencedores”. No caso, parece-me que o clichê se confirma. Não houve uma elite internacional vinculada aos índios que pusesse seu extermínio como “barbárie”, a ponto de haver o questionamento referente à necessidade e à possibilidade de retratá-lo na arte; da mesma forma, as forças de resistência árabes são tidas como terroristas e os judeus e estadunidenses, ainda do lado das elites, como heróis da democracia no Oriente Médio. A “Barbárie” não é, portanto, uma violação dos valores humanos básicos; é antes, uma violação dos valores humanos básicos quando direcionada EXCLUSIVAMENTE aos donos do poder, à elite.
            A “Estética da Barbárie”, nesse sentido, é mais do que a representação de violações aos humanos. Constitui-se como posição ideológica, colocação no jogo sócio-político numa disputa de poderes opostos. É um perigo, pois reafirma a posição superior da elite. Os espanhóis, vistos sob a ótica do século XVI, estavam civilizando os primitivos e desalmados nativos da América; sob a nossa ótica, massacrando um povo e colocando sua cultura na direção da extinção. Parcial, tendenciosa e indisposta a ver os dois lados do processo histórico (e sua dialética inerente e incontestável, porque é parte do passado), a “Estética da Barbárie” institucionaliza a visão historiográfica positivista na matéria que, a meu ver, deveria ser a mais livre de influências estranguladoras, que é a Arte. Está longe de mim o desejo de não representar as violações à humanidade: acho que é constituinte próprio do ser humano a dialética entre felicidade e sofrimento, que produz arte dos interstícios entre esses dois polos. A “Estética da Barbárie” representa apenas metade do sofrimento humano, apenas a metade vencedora, e exatamente nesse ponto é perniciosa. Exemplifico: tal Estética, no contexto médio-oriental, preza por descrever, representar e apresentar o quanto sofrem os israelenses por causa dos ataques de seus vizinhos palestinos; não dá conta, entretanto, do fato de que os israelenses possuem Forças Armadas extremamente bem treinadas ou que sua nação é essencialmente beligerante (há alistamento obrigatório inclusive para as mulheres), em oposição à resistência palestina, desarticulada justamente porque há uma oposição na ONU, da parte dos EUA e de Israel, à criação de um Estado Palestino. A cruel “Estética da Barbárie” exalta os sofredores que vencem, independentemente de estarem agindo corretamente ou não. Aos que perdem, nem uma vírgula na história; talvez sejam lembrados por terem sido os vilões subjugados pelos mocinhos heróicos.
            Dessa maneira, a “Estética da Barbárie” encaixa-se muito bem na cultura de bases judaico-cristãs, com a exaltação do herói (ou seja, do vencedor) que passa por privações para alcançar seu objetivo. Esse sacrifício aumenta o merecimento do herói e o coloca num posto de elevação espiritual. O aspecto aí apontado baseia-se também noutra questão: o merecimento leva ao sucesso, doutrina baseada, suponho eu, nas promessas divinas para o post mortem. Esse heroísmo judaico-cristão dos sacrifícios justifica em boa medida a “Estética da Barbárie”, baseando-a na ideia de que se há um vencedor, esse só pode estar do lado correto, do lado do bem, uma vez que Deus não beneficiaria um pecador, alguém agindo a favor das forças malignas. Na Queda do Homem vemos que o pecador é condenado; no Êxodo, que o crente é recompensado. Não podemos escapar desse destino histórico-sócio-ideológico sem antes nos propormos a quebrar nossos laços com essa tradição, em nome do bem-estar humano. Sem esse rompimento, estaremos fadados a repetirmos as análises históricas positivistas, as injustiças das elites, a exaltação do opressor e os lugares-comuns análogos na história do ser humano.
            Apesar disso, acho que há como escapar e reverter essa situação. Os processos históricos não devem ser vistos no após e nem no antes; devem ser vistos no durante. A verdadeira “Barbárie” não existe. Existe, sim, a luta constante entre opressor e oprimido e essa deve ser contada, mas verificada na presentificação das ações: em 1940, na Alemanha, o III Reich era o opressor e a comunidade judaica (e outros grupos sociais), o oprimido; em 2012, no Oriente Médio, a comunidade judaica é o opressor e a comunidade palestina, o oprimido. A história da humanidade é a história da relação opressor-oprimido. O opressor é o sujeito histórico a ser condenado, independentemente de vencer ou não na luta histórica. Inauguro, talvez, a Estética da Anti-Opressão: não quero a exaltação da condição do oprimido, mas sim o encorajamento da resistência, das insurgências, dos levantes populares. A Estética da Anti-Opressão teria um único objetivo, o de incentivar a luta contra as forças subordinadoras, contra o subjugo de forças sobre pessoas, contra a imposição de valores. Exaltemos não a inversão do jogo de poderes, porque a comunidade judaica passou de oprimida a opressora, mas exaltemos a anulação das forças de opressão, a neutralização dos jogos de poder humanos. Só assim, talvez, a Estética elevar-se-á.



[1] „Nach Auschwitz ein Gedicht zu schreiben, ist barbarisch“. ADORNO, Theodor. Kulturkritik und Gesellschaft.
[2] Reforço que não tenho inspirações positivistas, nem compromisso com as teorias de que “o homem mais civilizado é o mais evoluído”. Acho apenas que algumas coisas melhoraram no decorrer da história humana e a isso chamo “evolução”.

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